“Uma final do outro mundo”. No lançamento daquele que é apontado como jogo grande dos oitavos, Manchester City e Real Madrid encontram-se em realidades muito diferentes daquelas que viviam quando os ingleses foram a Espanha ganhar por 2-1. Alguns exemplos, recuperados pelo El País? Os citizens estavam fora das competições europeias por dois anos por terem violado segundo a UEFA as regras do fair play financeiro, entretanto o Tribunal Arbitral de Desporto reverteu a decisão e deixou apenas uma multa (e mais baixa); os merengues estavam em segundo na Liga e numa fase descendente, entretanto deram a volta com dez vitórias seguidas e sagraram-se campeões; os jogos tinham todos casa cheia (e com os bilhetes vendidos muito antes dos encontros), entretanto nem uma pessoa podem agora ter a não ser as obrigatórias. No entanto, entre tantas mudanças depois da pandemia, havia uma outra: o City jogou a preparar a Champions, o Real jogou para ganhar o Campeonato.

Real lançou o Isco mas o Ramo(s) quebrou e City subiu à árvore no Bernabéu em cinco minutos

Este era o grande desafio de Zinedine Zidane, um treinador com toque de Midas na Champions que ganhou como jogador (neste caso, em 2002, com memorável pontapé de moinho frente ao Bayer Leverkusen) e que não sabia o que era perder como técnico: em nove eliminatórias, passara sempre; em três finais, ganhara sempre. O francês já podia contar com nomes como Courtois, Marcelo, Asensio e Eden Hazard (ainda que com algumas limitações na zona do tornozelo), tinha Sergio Ramos castigado – o que dava a Éder Militão a possibilidade de justificar os 50 milhões que foram investidos na sua contratação – e continuava sem contar com Mariano, que deu positivo para a Covid-19, James Rodríguez, por pedido do próprio, e Gareth Bale, neste caso por ter dito que não viajava para Manchester e que esta manhã decidiu ir para um campo de golfe jogar e ter fotografias.

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Do outro lado, apenas a lesão de Kun Agüero funcionou como contratempo para Pep Guardiola, que sem nunca o admitir em conferências de imprensa foi testando várias soluções ao longo dos últimos encontros de uma Premier League que estava há muito decidida para um esmagador Liverpool, entre uma derrota difícil de (di)gerir nas meias da Taça de Inglaterra frente ao Arsenal. Bernardo Silva, um jogador que o próprio treinador admite merecer mais minutos por tudo o que faz (quase que fazendo um mea culpa da “injustiça” assumida pelo próprio) e que, nas derradeira partidas realizadas depois da pandemia foi utilizado num sistema de 4x3x3 como um dos alas na frente, como um dos médios interiores e até como jogador mais avançado ao meio (Chelsea, em Londres). Agora chegava a hora da verdade, num contexto de maior imprevisibilidade para chegar à primeira Champions.

Era quase um jogo de contrastes em relação à forma como as equipas gostam de abordar todos os encontros: como dizia o El Mundo, o racional Real Madrid tinha de encontrar o seu lado mais irracional para inverter uma desvantagem complicada; o “irracional” Manchester City tinha de apelar ao seu lado mais racional para saber gerir momentos de jogo e confirmar o avanço da primeira mão potenciando as virtudes nas lacunas do adversário.

“Sempre fui adepto do Barcelona, onde cresci e tornei-me naquilo que sou. Se vou defrontar o Real Madrid, quero sempre vencê-los”, assumiu Pep Guardiola no lançamento do jogo, entre elogios ao presente Benzema, ao ausente Sergio Ramos e à forma de atuar dos espanhóis. “Benzema é um jogador incrível, extraordinário. No Lyon já era muito bom e leva agora dez ou 11 anos no Real. Desde que estava no Barcelona saíram 20 jogadores que me perguntaram se estavam ao nível de Messi… Este é mais para essa lista. Ramos é um jogador muito importante, com uma carreira impecável. Sobre o encontro, posso dizer que às vezes queres controlar e as coisas correm torto. É difícil analisar o Real Madrid porque são muito bons”. “Eles são mais do que uma equipa. Têm aquela forma de jogar onde não podes relaxar nem se estiveres a ganhar por três ou quatro, conseguem sempre recuperar graças à sua grande personalidade. É a maior equipa na competição, mostraram isso. Sei que podemos ter uma equipa melhor mas temos de mostrar isso em campo”, acrescentou a esse propósito o médio Rodri.

“A equipa está bem, preparada para fazer este jogo. É a segunda mão, sabemos bem o que aconteceu na primeira mas estamos focados para aquela que será mais uma final, tentando ter um jogo perfeito para ganhar. Entramos em desvantagem, temos consciência disso, mas também sabemos que existe um segundo jogo para corrigir isso. Uma eliminatória nunca está fechada até ao último minuto. Tenho uma boa equipa, que tem as suas armas e estamos prontos para fazer um grande jogo, pensando em chegar à fase seguinte”, comentou Zidane, antes de assumir em termos públicos que foi Bale que se recusou a viajar para Manchester. “Sabemos como é difícil ganhar a Champions, sabemos que teremos pela frente um adversário que ataca muito bem mas também temos os nossos pontos fortes. Estes jogos são decididos nos pequenos detalhes e na eficácia. Tivemos agora mais tempo só para preparar este jogo e tentámos melhorar”, completou Varane, que não teria a seu lado Sergio Ramos.

O francês teria de assumir o papel de patrão da defesa mas foi por ele, e com muito mérito do Manchester City, que começou a cair a resistência do Real Madrid: dando sequência a uma melhor entrada no jogo, e numa fase em que os espanhóis ainda mal tinham passado a linha de meio-campo com bola, a pressão alta das unidades da frente deu resultado, Varane deixou-se antecipar por Gabriel Jesus após um passe à queima de Courtois e Sterling só teve de encostar para inaugurar o marcador (9′). Os espanhóis começaram mal e por pouco não ficaram pior, num início desastroso e com a defesa a meter água por todos os lados como aconteceu aos 15′: Sterling recebeu em linha um passe longo pela descoordenação entre centrais entre o “sobe ou fica”, virou-se para a baliza, teve todo o tempo para preparar o remate e atirou perto da trave num lance que teria acabado com a eliminatória.

Aos poucos, Casemiro começou a agarrar mais no meio-campo, Modric e Kroos tiveram bola para controlarem os momentos com outra definição e o Real Madrid provou durante 15 minutos que é um gato com pelo menos sete vidas: após assistência de Hazard entre linhas, Benzema recebeu e rematou para grande defesa de Ederson para canto (21′); logo a seguir foi o belga a arriscar a meia distância para nova intervenção segura do brasileiro (23′); e o empate chegou mesmo pelo suspeito do costume, Benzema, a cabecear entre Fernandinho e Laporte na área depois de uma grande jogada de Rodrygo pela direita do ataque, onde ganhou um dos raros duelos contra João Cancelo (28′). Percebeu-se que o Manchester City tremeu com esse golo mas o Real Madrid não conseguiu capitalizar aí esse momento, chegando ao intervalo empatado apenas porque Courtois conseguiu defender para a frente uma tentativa de longe de João Cancelo (36′) e Foden, após erro do guarda-redes belga, atirou ao lado (42′).

O segundo tempo voltou a ter um Manchester City com maior capacidade de pressão que condicionava todo o jogo do Real Madrid, com De Bruyne a conseguir chegar a zonas mais adiantadas do campo e com Sterling e Gabriel Jesus a terem boas oportunidades para recolocarem os ingleses de novo na frente, antes de voltar o equilíbrio e até outra capacidade dos espanhóis para chegarem à área tendo Benzema como principal referência ofensiva. Ou seja, jogo aberto, eliminatória em aberto, decisão em aberto e dois guarda-redes, Courtois e Ederson, a brilharem em vários lances, sobretudo num em que Gabriel Jesus deixou para trás Éder Militão numa rotação na área antes de uma soberba defesa do belga com a ponta dos dedos para canto. E seria Varane a “decidir” outra vez.

Em mais um erro “anormal” para um (tri)campeão europeu de clubes e mundial de seleções, que chegou ao Real Madrid ainda com 18 anos e fez uma carreira em ascensão ao longo de nove temporadas para se tornar um dos melhores centrais da atualidade, Varane deu a possibilidade a Gabriel Jesus para fazer o 2-1 e selar em definitivo a eliminatória. Os merengues ainda tinham mais do que capacidade para dar a volta e chegar ao 3-2 mas a equipa acusou em demasia mais um erro e a cara do próprio Sergio Ramos na bancada dizia tudo: o Manchester City tinha passagem marcada para Lisboa, com mais um triunfo frente aos espanhóis. Over and out.