Tinham passado alguns dias desde o final do Grande Prémio de Silverstone mas a imagem daquele pneu esquerdo da frente do Mercedes de Lewis Hamilton ainda continuava bem viva na memória. Aquele rasgão que levou a que o britânico acabasse a última volta com apenas três rodas era também muito mais do que um rasgão – era um sinal de coragem, por ter aguentado a pressão de poder ver uma vitória garantida fugir quase do nada; um sinal de alerta, por mostrar que não há triunfos certos especialmente neste Mundial de 2020 mais curto e com calendário diferente; um sinal quase dos deuses, por reforçar o domínio do hexacampeão com traços diferentes.

Final de loucos no Grande Prémio da Grã-Bretanha: Hamilton fura pneu, Verstappen aperta mas britânico faz história em Silverstone

Num ano atípico, marcado por uma pandemia que assolou o mundo, pedidos de justiça social que se alastrou ao mundo e uma crise em crescendo que vai marcar o mundo, a Fórmula 1 gira ainda mais à volta de Lewis Hamilton. E foram as suas palavras que prenderam todas as atenções no lançamento do Grande Prémio do 70.º Aniversário, mais uma vez em Silverstone, naquela que era a quinta prova entre demais medidas de segurança.

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“É o ano mais importante da minha vida, com tudo o que está a acontecer. É um ano especial e levo isso muito a sério. As pessoas perguntam onde vou buscar a motivação quando há tantos sítios que nos podem inspirar. Estar a lutar por um campeonato num tempo destes dá força e o pensamento de que pode haver mudanças em breve entusiasma”, comentou o piloto britânico, recordando não só os efeitos da pandemia mas também a morte de George Floyd e o movimento “Black Live Matters”. Sobre a renovação, numa semana marcada pelo prolongamento do vínculo de Valtteri Bottas com a Mercedes, nenhuma novidade e também com uma justificação: “Não me parece a altura certa para fazê-lo quando penso que tantas pessoas no mundo perderam os seus empregos. Sentar-me e negociar um contrato não me parece a coisa mais importante a fazer agora. Mas quero continuar na equipa”.

Entre treinos livres e qualificação, os Mercedes voltaram a dominar mas, ao contrário do que tinha acontecido nas três provas anteriores, a pole position foi para Bottas e não para Hamilton, o que trazia um outro interesse ao que poderia acontecer depois do completo domínio do britânico do início ao fim no passado fim de semana que esteve apenas em risco no arranque, quando o finlandês saiu melhor e por pouco não superou o companheiro de equipa na curva inicial. Fosse no arranque, na passagem pelas boxes ou mesmo em corrida caso quem fosse na frente não conseguisse aquela margem mínima de dois/três segundos, tanto havia margem para Hamilton reforçar a liderança no Mundial como para Bottas reduzir a desvantagem de 30 pontos com que chegava a este ponto, muito por culpa do pneu furado a três voltas do final da última prova que o atirou para o 11.º lugar. Sobre a luta na frente, este era o cenário; sobre o resto, havia um “convidado” extra a dar outra emoção à prova.

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O fim de semana nem começou da melhor forma para a Racing Point que, depois de saber que Sergio Pérez tinha continuado a dar positivo para a Covid-19, sendo de novo substituído por Nico Hulkenberg, foi penalizada em 15 pontos (além de pagar uma multa de 400 mil euros) depois de a FIA ter considerado a queixa apresentada pela Renault por copiar as condutas dos travões do RP20 do Mercedes de 2019, algo que tinha chamado a atenção logo nos treinos de inverno, em Barcelona (a equipa assumiu a “inspiração” mas rejeitou qualquer infração sobre o que estava regulamentado, uma opinião diferente daquela que a FIA teve agora a esse propósito). No entanto, e na qualificação, Hulkenberg foi o grande protagonista ao conseguir a terceira posição, à frente de Max Verstappen, Daniel Ricciardo e o agora companheiro de equipa, Lance Stroll. E como também um bem pode não vir só, cinco equipas (Williams, McLaren, Ferrari e Renault, além da Racing Point) decidiram protestar do castigo aplicado porque o sistema de arrefecimento de travões que levou à sanção continua ainda agora a ser utilizado.

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Luzes acesas uma a uma, luzes apagadas ao mesmo tempo, um grande arranque: Bottas conseguiu aguentar a pressão de Hamilton não só antes da primeira curva mas também em vários outros pontos ao longo da volta inicial, Max Verstappen disparou e saltou para a terceira posição à frente de Hulkenberg, Lance Stroll deixou um primeira aviso a Ricciardo e confirmou a subida ao quinto posto ainda na volta inicial, a Ferrari continuou nessa fase a saga dos problemas que tirou uma folga com Leclerc no fim de semana passado com o monegasco a rodar na oitava posição e Vettel a fazer um peão sozinho no arranque que o colocou no 13.º lugar quando chegámos ao primeiro quarto de corrida, muito marcada pela preocupação de todas as equipas com a estratégia dos pneus.

Com o passar dos minutos, algo diferente começava a ser desenhado e que ficou resumido numa mensagem via rádio de Max Verstappen para a equipa: “Deixem-me ir, deixem-me ir”. Pela primeira vez um carro da Red Bull estava a andar como os dois Mercedes e nem mesmo quando Bottas e Hamilton pararam na primeira troca de pneus, com vantagem reforçada para o finlandês em mais um par de segundos porque o britânico entrou de novo na pista atrás de Leclerc ao contrário do companheiro de equipa, o holandês ficou a perder. Pelo contrário, até conseguia aumentar o avanço de forma muito ligeira. A meio da corrida, a roda direita da frente de Hamilton falhava, Verstappen dizia que os pneus se estavam a comportar bem. A surpresa estava à vista de todos.

Chegava a altura de Verstappen parar, numa estratégia arriscada até pelo que se vira no último Grande Prémio mas que trazia dividendos. E foi nesse momento que se percebeu que esta não seria mesmo uma corrida entre Mercedes e os outros: o holandês ainda esteve atrás de Bottas, conseguiu superar o finlandês, passou para a frente da corrida e num curto lapso de tempo ganhou dois segundos de avanço na liderança da corrida. “Ele tem de andar com menos pressão nos pneus”, dizia Hamilton para a equipa enquanto se debatia em pista com mais problemas de aderência cada vez mais visíveis. “Diverte-te Max, diverte-te”, atirava a Red Bull para Verstappen, antes de mais uma manobra inteligente de levar o holandês às boxes quando Bottas parou acreditando que tinha um carro muito mais estável e jogando também com os crescentes problemas que Lewis Hamilton ia enfrentando.

Se antes a Red Bull pedia a Verstappen para apostar tudo, a seguir recomendava outra gestão dos pneus porque o carro estava com o ritmo certo para qualquer eventualidade de poder ter de vir a atacar. Só falhava mesmo um ponto que ia surpreendendo toda a gente: Hamilton não parava. A roda direita da frente dava sinal, os pneus traseiros estavam desgastados mas o britânico continuava na frente a tentar tudo para manter a vantagem possível. Esse era o único problema da Red Bull, que pediu a Verstappen para apertar um pouco mais o ritmo quando a diferença já era de apenas oito segundos. Não foi necessário: na volta seguinte, Hamilton parou mesmo, reentrou com pneus duros e ficou atrás de Leclerc, que estava a fazer uma excelente corrida depois do mau início e que conseguiu ganhar uma assinalável distância para os Racing Point de Hulkenberg e Lance Stroll.

A corrida avançava para o final e percebia-se que a surpreendente utilização de pneus duros por parte de Max Verstappen na Q2 abria possibilidade a uma estratégia diferente do holandês em prova, como veio a acontecer. E como se não bastasse a ideia certa de corrida da Red Bull, teve ainda o mérito de ler da melhor forma o que se estava a passar em pista, deixando os Mercedes a lutar pelo segundo lugar com Bottas na frente e Hamilton a ganhar tempo em todas as voltas e todos os setores ao finlandês, com os pneus bem mais desgastados do que os do companheiro. O britânico minimizava o impacto da primeira corrida onde a Mercedes não foi melhor esta época, alargando a vantagem no Mundial para Bottas e ficando com mais 30 pontos do que Verstappen, que subiu ao segundo lugar da classificação geral no dia em que superou o número de Grandes Prémios do pai, Jos.