Título: Salazar – A queda de uma cadeira que não existia
Autor: José António Saraiva
Editora: Gradiva

A capa de “Salazar: A Queda de uma Cadeira que não Existia” (José António Saraiva; Gradiva)

Afinal era uma banheira. E se há mérito em José António Saraiva, está em conseguir enchê-la a ponto de a verter num livro. Não podemos dizer que se banhe nas águas mais profundas, mas não deixa de ser impressionante que um autor nos consiga imergir num mistério tão comezinho por várias centenas de páginas.

Não negamos a importância da pequena História; no entanto, parece-nos excessivo dedicar às pequenas Histórias grandes trabalhos. Nem o mais bizantino teólogo poderia apresentar como prova da sua minúcia a revelação de um mistério deste calibre. Podemos encontrar discussões escolásticas sobre que tipo de instrumentos musicais devem ser usados na missa, ou em que lugar do Céu estão sentados os anjos; no entanto, estes problemas ocupam um artigo ou, no máximo, uma questão inteira da Suma Teológica. Ocupar um livro inteiro com a questão da queda de Salazar está, assim, à altura dos mais picuinhas dos sábios de Constantinopla.

É certo que, para protelar a resolução do mistério, José António Saraiva vai intercalando o fatídico episódio com a História do país. Não falta a festa de Atenor Patino, alguma coscuvilhice política com cinquenta anos e as costumeiras reflexões sobre a difícil transição de Salazar para Marcelo Caetano. Tudo isto, porém, é escrito em piloto automático. Não traz nada novo, não há análises políticas complexas, todas as grandes questões do fim do Estado Novo cumprem apenas uma função narrativa: atrasar a chegada das provas cabais de que Salazar caiu afinal numa banheira, deixar os leitores a salivar pela resposta à pergunta “afinal, porque é que sempre se falou em cadeira, quando a grande revolucionária era uma banheira?” e permitir que, enquanto leem aquilo que já sabem sobre os grupos conservadores e progressistas do regime, os leitores procurem adivinhar as relações entre o segredo e toda a política.

Haveria afinal um mistério encoberto pela cadeira? Uma conjura que compromete Américo Tomaz, Marcelo Caetano e Franco Nogueira, de tamanhas proporções que só uma cadeira disfarçará o caso?

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Não exageramos, José António Saraiva leva o caso para este nível de suspense, falando em mistério e em segredo, como se a cadeira escondesse um segredo de Estado capaz de torcer a interpretação de toda a História do Estado Novo.

Embora seja uma estratégia de gosto discutível, não nos parece mal revestir a tese central deste sensacionalismo. O livro é, aliás, uma aula de construção narrativa, em que a tese central vai sendo pouco a pouco revelada para nunca se perder o interesse do leitor.

O perigo, porém, está nas expectativas que uma estratégia destas cria no leitor. Na verdade, José António Saraiva não descobriu nenhum documento. Limita-se a verificar as contradições entre as versões do calista, do barbeiro e da governanta para, em vez de escolher uma, eliminá-las todas. Acrescenta a isto a menção a algumas quedas na banheira e tem o grosso da sua tese. Falta, porém, explicar como é que se propagou a mentira. Ora, também aí a dimensão dada ao mistério acaba por não ser condizente com a solução. Afinal explicar que a queda na banheira era menos digna, já que implicaria imaginar o presidente do conselho como veio ao mundo, não é uma revelação do outro mundo.

José António Saraiva é muito claro a escrever, o que torna a leitura fácil, tem as suas teses muito bem definidas e domina a arte de criar expectativas no leitor. Falta, porém, que as soluções estejam à altura das expectativas criadas. Para um livro que, no fundo, não traz nada de novo a não ser uma interpretação tão certa como qualquer outra sobre um tema menor, será talvez pesado, mesmo com a banheira, chamar-lhe banhada, mas também não será mais do que um entretém.