Um velho bêbedo, obsceno e malcriado. Esta foi, durante muitos anos a imagem de (Henry) Charles Bukowski. A poesia e os romances fariam dele um beat menor e já fora de moda, não fosse Sartre a catapultá-lo para a fama com a afirmação de que era o “único poeta da América”.

Continuou bêbedo, obsceno e malcriado, mas as suas tropelias ganharam uma aura e um significado superior, como se Bukowski fosse o representante de uma vida mais autêntica e repulsiva, uma espécie de Diógenes moderno, que levava o cinismo ao extremo de nem sequer ensinar nada com o seu comportamento. Uma presença incómoda, simplesmente, nada mais do que isso.

É verdade que a América nunca comprou a pose de Bukowski com o mesmo entusiasmo que a Europa. A América vinha já de uma geração beat que cantara tropelias e transgressões, já tivera o seu malditismo gregário, pelo que a cantiga de Bukowski já não podia impressionar da mesma forma. Se a diferença entre Kerouac e Bukowski é uma diferença de quantidade – mais mulheres, mais droga, mais dentes podres e mais lixo – a novidade fica bastante esbatida.

Há, no entanto, em Kerouac e Ginsberg um centramento na América, um diálogo com tradições especificamente americanas, sejam elas a estrada ou a fronteira, que os tornam menos assimiláveis à tradição europeia.

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Bukowski faz por não ter tradição nem metafísica, pelo que a sua poesia – sobretudo a sua poesia, muito mais do que os seus romances – é muito mais facilmente aceite numa Europa à procura de destruir as suas raízes e a sua moral.

A mundividência de Bukowski pode parecer algo monótona: ao fim de algum tempo, todos os bêbedos nos parecem iguais e as suas histórias são pouco interessantes. No entanto, aquilo que Bukowski procura fazer é arrancar do seu mundo literário a ideia de abstração. Não há bêbedos, há apenas bebedeiras e essas são sempre diferentes, da mesma maneira que o desejo por uma mulher se apresenta sempre renovado, como se fosse único, mesmo que todas as noites acabem da mesma maneira.

O que impressiona em Bukowski não é o lado maldito, e só os tolos podem elegê-lo para modelo. A vida contada por Bukowski não é uma vida mais autêntica no sentido de uma vida melhor. Na verdade, o submundo de Bukowski é apenas a hipertrofia do mundo certinho que ele despreza. O consumo branco das camadas ordenadas é apenas a versão moderada de um mundo que quer as mesmas coisas mas as quer em larga escala, a ponto de transformar a vida num horrendo desfilar de ressacas e pobreza.

O que é verdadeiramente interessante em Bukowski é esta ideia de que o desejo se apresenta sempre como novidade. Não interessa que o vazio pós-sexo já nos tenha consumido uma e outra vez; quando chega à altura, o desejo é imparável. Daí que a riqueza das vidas redunde numa vida sempre igual. Cada mulher e cada bebida é diferente e apetecível, mesmo que nos conduza às vidas miseráveis que se veem em Bukowski. O que é impressionante na sua poesia é esta vitalidade de um desejo que nos destrói mas nem assim é largado.

Há certamente muita pose em Bukowski e as incoerências próprias dos beats. Manias estilísticas não corrigidas, simplismos, contradições no enredo, uma rudeza artificial e uma filosofia barata na sua atitude que devem ser referidas. No entanto, tudo isso faz parte da autenticidade de Bukowski. É fácil encontrar os seus defeitos, perceber a fraqueza dos seus propósitos e até a vulgaridade de muita da sua prosa. No entanto, tudo isto constrói o lado mais honesto e mais engraçado da sua figura literária.

Na prática, a ausência de uma metafísica podia levar-nos a interpretar Bukowski como quiséssemos. O facto de Bukowski se demitir de dar um sentido à sua obra torna-a permeável a todos os sentidos; no entanto, isso dá-lhe uma certa humildade que não deixa de ser interessante.

Bukowski, na verdade, não quer dizer nada. E é nisso que ele consegue que a vida fale por si. É isso que torna os excessos e a estética artificial do pirata urbano toleráveis. Por muito que Bukowski se centre na boémia e no nojo, a boémia e o nojo dizem sempre outra coisa, mesmo que nem o autor nem ninguém saibam qual é.