Se organizar um evento gastronómico com mais de 30 cozinheiros de todo o país já é um desafio, fazê-lo durante uma pandemia, numa altura em que o setor da restauração luta para sobreviver e os bolsos dos portugueses (e não só) estão consideravelmente mais leves é coisa de loucos. Muitos achariam que sim mas Ana Músico e Paulo Barata não se deixaram convencer por essas condicionantes. Este casal de apaixonados pela comida é o corpo e alma da Amuse Bouche, agência de comunicação e eventos ligados à gastronomia que organiza o já conhecido Sangue na Guelra e agora também o Arrebita Portugal. É este o nome do evento gastronómico que acontece já a partir desta sexta-feira, dia 21, e se estende até domingo, em Portimão, das 19h às 23h30. O Observador falou com a dupla ao telefone — já estavam no local a tratar dos preparativos — para perceber ao certo como nasce esta ideia que promete vir a espalhar-se pelo país (um Arrebita Idanha-a-Nova está já na calha para a última semana de setembro e primeira de outubro e será mais virado para as noções de sustentabilidade e natureza).

De Itália para Portugal

“É o desafio das nossas vidas. Pelo menos para mim, enquanto curador e produtor de eventos”, afirma sem hesitar Paulo Barata. Ele e Ana Músico já fizeram de tudo: desde jantares de luxo na suite presidencial do hotel Ritz de Lisboa aos simpósios Sangue na Guelra recheados de super-estrelas internacionais do mundo da cozinha. O novo coronavírus, claro, é o culpado dos obstáculos que este Arrebita traz consigo. “Tivemos de planear todo um festival à medida da Covid-19”, explica, e ainda para mais com uma agenda limitadíssima — “Devíamos tê-lo feito em três meses mas estamos a fazer em quase três semanas!” O que lhes passou pela cabeça, então,  para partirem rumo a este desafio? Ana Músico explica.

Paulo Barata e Ana Músico são os criadores deste Arrebita Portugal. ©Gonçalo Vilaverde

“Fazemos parte da indústria da restauração”, começa Ana. A sua empresa, como só trabalha com este meio, também se viu “brutalmente” atingida pela crise que se abateu sobre todo o setor, algo que os levou a tentar abrir novos caminhos para sair do fosso. “Tentámos encontrar outras oportunidades, abrir os olhos, o peito e a alma e sentimos que tínhamos de criar qualquer coisa que agitasse um pouco a nossa indústria” — e foi assim que se lembraram do Arrebita, que inicialmente esteve para se chamar ‘Saltita’. “O Paulo visitou há uns anos um festival muito giro em Itália que era feito no centro histórico de uma vila. Todos os cozinheiros serviam a partir de igrejas, da casa das pessoas… Sítios assim. Isso foi sempre uma ideia que nos inspirou e pensámos que um dia poderíamos fazer algo do género. Foi agora”, explica.

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O contexto mundial ditou que se tentasse fugir ao máximo de grandes centros populacionais e o próprio estado da economia e do turismo nacionais reforçou ainda mais a ideia de que um Arrebita teria de ser sempre descentralizado. Paulo adianta-se a Ana ao explicar que quiseram que o Arrebita pudesse vir a ser uma coisa mais espalhada pelo país e que se fosse adaptando aos diferentes municípios  a quem propuseram a realização do evento, e cuja primeira reação, recordam, foi de interesse imediato. Portimão foi o primeiro a chegar-se à frente: A juntar a isto há ainda a curiosidade de tanto Ana como Paulo terem crescido nesta cidade algarvia, motivo que os faz “sentir ainda mais em casa”.

O festival italiano que inspirou este Arrebita Portugal. © Paulo Barata

Simples mas com ‘uau!’

Conceito criado, apresentações feitas e feedback positivo: o que foi preciso então para se passar do papel para a realidade? Ana explica que a chave foi uma avaliação feita por uma comissão especial composta por elementos da Proteção Civil, da DGS, da Câmara Municipal, da PSP e dos Bombeiros: “O Arrebita só passava se houvesse unanimidade e conseguimos isso”, completa Paulo. Para lá de todas as recomendações oficiais das autoridades policiais e de saúde, a organização quis ir mais além e através de uma parceria conseguiu garantir que todos os participantes no festival (chefs, produção, voluntários, etc) fossem testados — “Foi exigência nossa que todos fossem testados, sem teste não podem vir. Cozinheiros, pessoal da produção… toda a gente terá de ser testada para termos ainda mais um fator de segurança extra. Ninguém nos pediu mas nós fizemos questão de que fosse assim”, garante Paulo. Dada a luz verde agora era só arregaçar as mangas e pôr as mãos na massa. Ou seja, começar a convidar cozinheiros.

“As reações dos cozinheiros também foram espetaculares! Sente-se uma onda muito especial, o pessoal está cheio de vontade de fazer coisas, de querer manter vivo o setor e querer mostrar-se…”, refere Ana. Esta reação ganha ainda mais valor tendo em conta que muitos dos intervenientes estão a trabalhar nos seus espaços com equipas reduzidas e a fazer esforços para se aguentarem — “[…] mesmo assim fizeram o esforço de participar nisto. Estamos muito agradecidos porque vão estar, entre aspas, debaixo de fogo” já que o escrutínio e a exigência estão mais elevados que nunca.

Tendo isto conta, o desafio gastronómico que lançaram a cada cozinheiro — na extensa lista encontra Henrique Sá Pessoa, Leonor Godinho, Hugo Brito, Angélica Salvador, André Lança Cordeiro, Luís Gaspar, Rui Sequeira, Leandro Araújo, João Marreiros e muitos mais — foi bastante descomplicado: “Pedimos algo simples, que desse para comer em movimento (já que não vão haver zonas para se sentar e comer) e que fosse guloso. Pratos que já tivessem feito nos seus restaurantes e que tenham deixado as pessoas ‘Uau!'”, explica Paulo. Tudo a preços entre os cinco e os oito euros e com opções que vão dos doces aos salgados sem esquecer os vegetarianos. Muitas referências portuguesas mas também algumas coisas de comida do mundo trazidas por “chefs viajantes”.  Tanto Ana como Paulo ressalvam que de um modo geral quiseram não só “lançar sangue novo, cozinheiros jovens e muito talentosos que aparecem menos mas merecem maior visibilidade” como também impulsionar projetos novos e promissores de “filhos da terra”.  

A praça da República, em Portimão, é o ponto de partida do Arrebita. D.R.

Mas e na prática, o que se vai encontrar no Arrebita?

Para perguntas simples, respostas diretas. Ana Músico explica que os interessados em participar deverão, nos dias do evento, deslocar-se até à Alameda da República, o ponto de partida. “O espaço é muito grande, dá para as pessoas estarem à vontade, e dessa Alameda parte uma rua para sul e outra para norte — estas são as ruas do evento”, acrescenta. O acesso ao Arrebita será gratuito mas condicionado de forma a garantir as medidas de segurança necessárias para evitar contágios. Quer isto dizer que dentro de cada “restaurante” improvisado só poderão estar dois clientes em simultâneo e os restantes terão de aguardar pela sua vez. Em cada uma das duas ruas do festival só poderão estar, em simultâneo, 40 pessoas, daí só poder entrar alguém quando outro sair, característica que leva a organização a lançar dois apelos: um deles à paciência, já que será preciso esperar para se poder aceder à comida, e à gestão de horários para evitar grandes enchentes.

Falando em esperas: haverá certamente uma primeira no pórtico das entradas para as ruas festivaleiras mas Ana explica que nessa fase “enquanto esperam as pessoas podem ir consultando todas as informações importantes através de QR codes que darão informações como onde estão os chefs, quais os pratos que servem e quanto custam”. No geral as duas ruas serão de acesso pedonal exclusivo e terão todo o comércio em funcionamento — “a ideia é poder incentivar a economia local, a pessoa pode comer qualquer coisa e depois comprar uma bugiganga qualquer na loja ao lado”, explica Paulo. Nesta mesma onda há que assinalar que restaurantes fora do recinto foram desafiados a ter um “prato Arrebita”, sugestões dentro dos mesmos preços daquilo que se encontra no festival que podem servir de alternativa a quem quiser evitar o recinto em si.

O chef Filipe Rodrigues, da Taberna do Mar (Lisboa), é um dos convidados e vai servir o seu famoso nigiri de sardinha (duas unidades cinco euros). D.R.

“As pessoas vão ter uma experiência diferente, isto é um festival cujo conceito é o movimento e a segurança. Todos sabemos do contexto de pandemia em que vivemos agora e por isso a ideia é fazer reinar a solidariedade e a cooperação sem comprometer a alegria e o à vontade”, refere Ana. “Não é o Arrebita que nós queríamos, não é o Arrebita que a autarquia também queria mas é o arrebita possível”, reforça. Acima de tudo é um sinal de que ainda há esperança para sair da fase menos positiva trazida pela pandemia, que a partilha e a criatividade ainda pode existir, mesmo que em moldes diferentes.