E agora um grande clássico do teatro lírico, como é a Tosca, de Puccini, mas em versão adaptada ao século XXI. O texto e a música são os mesmos, só que a atitude das personagens está longe do que acontecia no original de há 120 anos. “A nossa versão é feita a pensar no mundo de hoje porque o código de comportamento que é normal em 2020 não está presente nos clássicos da ópera”, resume a soprano Catarina Molder. “A Floria Tosca não vai corar quando o Cavaradossi lhe dá um beijinho na mão. Agarra-se a ele aos beijos, porque é uma amante dos dias de hoje e uma mulher hoje não fica corada quando recebe um beijo do namorado.” Mas há mais.

A produção pode ser vista a partir desta sexta-feira às 21h30 no Jardim do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e marca o arranque de uma nova iniciativa cultural na cidade: o OperaFest Lisboa, festival de teatro lírico clássico e contemporâneo, cuja direção artística pertence precisamente a Catarina Molder.

O festival prolonga-se até 11 de setembro e além da Tosca propõe a gala “Traição e Engano”, com a estreia portuguesa do tenor mexicano Rodrigo Porras Garulo acompanhado ao piano por Francisco Sassetti (terça, 25, às 21h30). Ou ainda a Maratona Ópera XXI, um concurso para novas óperas que decorre nos dias 30 e 31 de agosto e 3 e 4 de setembro. Noutro local, as Carpintarias de São Lázaro, no Martim Moniz, acontece a 6 de setembro, às 18h00, a conferência do musicólogo Rui Vieira Nery “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”.

“Queremos chegar a um público diverso, português ou turista”, explica Catarina Molder (além de diretora artística, vai interpretar a própria Tosca e assina a encenação juntamente com Otelo Lapa). “É um típico festival de verão de ópera, só não é típico na sua programação e oferta, nisso somos originais. Não queremos um festival de nicho nem de música contemporânea nem só de reportório.”

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“Avançar com um festival destes numa época de Covid-19 é uma loucura”

A iniciativa estava pensada há bastante tempo mas só agora reuniu condições para se concretizar, apesar de este ser um ano atípico, devido à pandemia. Estava até previsto que os bilhetes estivessem à venda a partir de 16 de março, mas com as medidas de confinamento muita coisa teve de ser alterada no OperaFest. “Sei que avançar com um festival destes numa época de Covid-19 é uma loucura, mas tenho essa dose de loucura. Não quis privar o público de ter acesso à ópera num ano em que tivemos de estar fechados em casa e em que o Teatro de São Carlos não pôde ter mais programação”, acrescenta a diretora.

Com apoio da Direção-Geral das Artes, da Câmara de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian, o festival é organizado pela Ópera do Castelo, uma produtora de eventos culturais criada por Catarina Molder em 2008 e em cujo portfólio constam vários espetáculos ao vivo de canto lírico e também a série de programas Super Diva – Ópera Para Todos, que se mantém no ar há vários anos na RTP2. Apesar dos apoios, segundo a organizadora, o OperaFest depende sobretudo da bilheteira. E os bilhetes custam entre 20 e 50 euros, com alguns descontos.

Ainda sobre a Tosca do século XXI, Catarina Molder acrescenta mais uma novidade: o olhar crítico sobre a sociedade atual através de duas personagens, o coro e o barão Vitellio Scarpia. “O nosso coro remete para os estagiários e voluntários, daqueles que hoje são explorados por tudo e por todos e que ainda têm pais com ordenados que os conseguem ajudar”, diz a cantora. “Aliás, o festival tem muitos colaboradores até aos 25 anos, mas todos recebem honorários e ninguém aqui trabalha de graça”.

Por outro lado, Scarpia (interpretado por Christian Lújan) não surge enquanto o chefe da polícia de Roma, como no original, antes se inspira “em alguns políticos corruptos que temos tido em Portugal, como um ex-primeiro-ministro ou um ex-banqueiro que levaram o país à ruína”, diz a cantora. “São pessoas que se julgam acima da lei e o Scarpia tem algo dessas personagens, porque é absolutamente encantador e irresistível, como todos os grande vilões e é por isso que conseguem enganar-nos.” Os outros intérpretes da ópera são Xavier Moreno, Luís Rodrigues, Nuno Dias, Rodrigo Carreto e Leandro Moreso.

Catarina Molder num espetáculo de 2016 ao lado de Carlos Guilherme

Cinco mil euros para uma ópera nova

Os ensaios têm decorrido no local de apresentação, um espaço ao ar livre com uma boa vista sobre Lisboa, e foram testemunhados esta semana pelo Observador, que aproveitou a ocasião para trocar impressões com o maestro, o luso-polaco Jan Wierzba. Vai dirigir o Ensemble MPMP, com apenas 15 músicos devido às regras de distanciamento social. Disse que o arranjo musical é novo, porque a orquestração de Puccini implicaria 80 elementos. Noutros espetáculos do OperaFest os músicos serão dirigidos pela maestrina Rita Castro Blanco.

Relativamente à Maratona Ópera XXI, Catarina Molder  diz que se justifica por haver em Portugal maior interesse por peças de reportório e ainda pouca expressão da ópera contemporânea.

“A ópera em Portugal tem pouco dinâmica e quanto menos se faz, menos se quer fazer”, critica. “O Teatro de São Carlos, que é a nossa casa da ópera, não faz uma encomenda há mais de uma década e não é por falta de dinheiro, é por falta de vontade, porque uma ópera de câmara é perfeitamente viável dentro do orçamento de São Carlos. O Teatro de São João, no Porto, também não programa nem encomenda ópera, o que é lamentável.”

A organização lançou um repto a jovens compositores até aos 35 anos, que apresentaram um trabalho anterior para mostrarem as suas capacidades. Foram selecionados sete, que tiveram direito a uma bolsa e puderam compor uma ópera original durante o período de confinamento. Vão agora, durante o OperaFest, ser avaliados através do espetáculo final com direção musical de Rita Castro Blanco e direção cénica de António Pires.

Quem ganhar, tem uma nova encomenda no valor de cinco mil euros para uma ópera de maior fôlego a ser apresentado numa edição futura do OperaFest. No júri vão estar Catarina Molder, Rui Vieira Nery, António Chagas Rosa (compositor), Henk van der Meulen (compositor e diretor Conservatório Real de Haia), Aya Koretsky (realizadora de cinema) e José Wallenstein (ator e encenador).