A dúvida perdurou até hoje. Em que dia caiu Salazar no forte do Estoril, daí resultando uma lesão cerebral que o afastaria do poder dois meses depois?

Os historiadores dividiam-se. O registo da agenda de Salazar assinalava o dia 2 de agosto para a visita do calista Augusto Hilário. E, como o calista disse estar presente no momento da queda, essa data foi assumida por muitos.

Mas havia outro documento que contradizia o anterior: um cartão do próprio calista, com data de 1 de agosto, que desejava as melhoras ao presidente do Conselho pela «tremenda queda» que dera. Como sair daqui?

O diretor deste jornal, Miguel Pinheiro, optou por esta segunda data, dando crédito ao calista. Mas como explicar o ‘erro’ de Salazar ao registar o dia 2 na agenda?

Na investigação para o meu livro sobre o salazarismo, andei meses à volta deste enigma. Qual a data que estaria correta? Até que tive uma intuição: as duas datas estavam certas. A sessão com o calista estava marcada para 2 de Agosto, tendo-a Salazar registado na página da agenda relativa a esse dia. Mas, na véspera, Salazar caiu, ficou um tanto maltratado, levando a governanta Maria de Jesus a telefonar ao calista a desmarcar a sessão.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A banheira de Salazar

Como não gostava de revelar ao telefone os ‘segredos’ do patrão, a governanta não disse o que se passara. O calista foi então ao forte de Santo António informar-se, Maria de Jesus relatou-lhe o acidente com cores negras, e o homem deixou um cartão a desejar a Salazar as melhoras da «tremenda queda» que sofrera.

E assim se esclareceu um dos muitos enigmas da vida de Salazar: o acidente que determinou a sua morte política ocorreu no dia 1 de Agosto de 1968.

Na investigação histórica, mais importante por vezes do que descobrir um novo documento (frequentemente com pouco valor), é interpretar de um modo novo os documentos disponíveis e encaixá-los num puzzle que faça sentido. Foi o que sucedeu neste caso.

A queda como ponto de partida

Foi pela queda ‘da cadeira’ (que afinal foi uma queda na banheira, como explico no livro) que iniciei uma trilogia sobre o Estado Novo, cujo 1º volume (Salazar – A Queda de Uma Cadeira Que Não Existia) foi objecto de crítica nas páginas do Observador.

Escreveu o crítico que o livro se resume praticamente ao episódio da queda da cadeira – ao qual, para disfarçar a irrelevância do facto, acrescentei umas historietas sobre o Estado Novo conhecidas de todos. Ora, a afirmação deixou-me perplexo. Ministros e familiares de Marcello Caetano, familiares de médicos de Salazar, amigos de alguns protagonistas da época contactaram-me a dizer que desconheciam inúmeros factos constantes do livro e, em certos casos, modificaram a sua visão sobre aspetos importantes nele referidos.

Ora, estas pessoas que viveram a época por dentro, em posição privilegiada, desconheciam muitos factos relatados no livro e o jovem crítico conhecia-os de ginjeira e dizia que eram de conhecimento corrente?

Alguma coisa estava errada…

Será que o crítico conhecia em profundidade a relação de Salazar, no início do seu percurso político, com os católicos, com os monárquicos, com os militares, com os fascistas? Conhecia a forma como Salazar construiu um poder pessoal único na história contemporânea portuguesa, enganando os monárquicos, iludindo os católicos, enfrentando os militares, isolando os fascistas? E jogando com a força de uns contra outros em seu benefício?

Será que o crítico sabia que Salazar começou a redigir a Constituição de 1933 logo em 1930, quando ainda era apenas ministro das Finanças – o que mostra que nessa altura já haveria um acordo com Carmona para ascender a presidente do Conselho? E sabia o papel que tiveram na redação do texto constitucional dois jovens colaboradores de Salazar, Marcello Caetano e Theotonio Pereira, e como Salazar os conheceu?

Será que o crítico tinha um conhecimento perfeito das relações entre Salazar e Marcello Caetano, relações essas que só por si davam um livro? Guilherme Valente, o presidente da Gradiva e uma das primeiras pessoas a quem dei a obra a ler, disse-me depois que Marcello era possivelmente o filho que Salazar desejava mas não conseguiu ter…

Sabia o crítico que Marcello Caetano dizia a Salazar o que nem os seus amigos do tempo de Coimbra tinham coragem de lhe dizer, criticando-o no plano político e no plano pessoal, recusando-lhe convites? E que nem o poupou na época de uma depressão que atingiu o ditador no pós-guerra? Disse-lhe tudo – e Salazar perdoou-lhe sempre, com a benevolência com que os pais encaram as diatribes dos filhos.

Conhecia bem o crítico os argumentos usados por Salazar durante a Segunda Guerra Mundial, em que revelou o génio do político e a manha do aldeão, explicando aos alemães as vantagens da neutralidade portuguesa e convencendo os ingleses da mesma coisa, embora com outros pressupostos? E sabia como Salazar recebeu a notícia da vitória Aliada?

E conhecia de modo circunstanciado a referida depressão violentíssima que atacou Salazar no pós-guerra, levando-o a exilar-se em Santa Comba, sem querer ver ninguém (chegando a dizer a Marcello Caetano, quando este o foi visitar, que era uma «violência» querer que ele aparecesse em público para dar um sinal de vida)?

E sabia o que curará Salazar da depressão? Que o romance com Christine Garnier, uma jovem e coquette escritora francesa que vem a Portugal em 1951 escrever um livro sobre ele, tem um papel decisivo nessa cura?

E tinha conhecimento de que, na correspondência com o embaixador em Paris, Marcello Mathias, não há carta dos anos 50 em que Salazar não se refira a Garnier? E que Salazar chegará ao extremo de a condecorar às escondidas, na embaixada de França em Paris, dizendo ao embaixador para não dizer nada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros? E que pedirá ao banqueiro e colecionador Ricardo Espírito Santo, o seu amigo mais íntimo nesta época, o único com quem partilha o amor pela escritora, para mandar fazer a um artesão uma condecoração falsa para impor à francesa?

Será que o crítico sabia tudo isto?

Se sabia, tiro-lhe o chapéu! Eu confesso que, embora trate deste tema desde 1974 (ano em que publiquei o livro Do Estado Novo à Segunda República), tive de investigar duramente ao longo de dois anos, muitas vezes com esforço, lendo centenas de livros, consultando milhares de documentos, cruzando informações, interpretando documentos de uma forma nova, para chegar a escrever este livro – que o crítico, do alto do seu imenso saber, desprezou de forma ligeira, para não dizer chocarreira.

Um Salazar de carne e osso

Seja como for, o crítico deu do livro uma ideia incorreta. E se não comento a sua opinião – um autor não tem de gostar das críticas – já me importa que os leitores deste jornal, que respeito, fiquem com uma ideia errada sobre o conteúdo da obra.

Na verdade, não se trata de um livro sobre a queda na banheira: este foi apenas o ponto de partida de uma trilogia que pretende reconstituir, com um olhar fresco, a história de uma época muito mal conhecida.

Até aqui, a história do salazarismo foi quase sempre contada a preto e branco: ou eram panegíricos de Salazar e do salazarismo, ou eram libelos acusatórios. Há poucos livros a olhar para aquele tempo com um olhar limpo de preconceitos. E que encarem Salazar não como um herói ou um vilão mas como um homem de carne e osso – com as suas qualidades e os seus defeitos, as suas forças e as suas fraquezas, o seu génio revelado em muitas circunstâncias mas também a sua mesquinhez observada noutras.

A direita não gosta da humanização de Salazar, porque o apeia do pedestal. E a esquerda também não gosta, porque destrói o mito do monstro sem forma humana.

Mas 50 anos depois da sua morte é tempo de o estudar sem preconceitos. E olhando mais para os factos, tentando percebê-los e encaixá-los num todo lógico, do que fazer grandes teorias impregnadas de ideologia onde os acontecimentos se apagam. Tentando reconstituir a época, mergulhando nela e revelando-a por dentro como se lá estivéssemos. Foi isso que procurei fazer.

Este 1º volume, que arranca com a queda do ditador no Estoril, faz depois um longo flashback que vai desde a ascensão de Salazar até ao pós-guerra. O 2º volume vai de 1951 a 70, ano em que Salazar morre. E o 3º cobre a fase final do marcelismo e o 25 de Abril, incluindo a guerra colonial e os esforços de Marcello Caetano para a terminar.

O Estado Novo – A História Como Nunca Foi Contada assim se chama esta trilogia. Cujo objetivo os leitores do Observador tinham direito a conhecer de uma forma séria e não apenas através de um texto ele também carregado de preconceito.