“Gostas de puxar as calças para baixo, não gostas?”; “Tens sorte, ainda não te violei”; “Se continuas a baixar-te assim não tarda vais demorar nove meses a levantar-te” — estes são apenas alguns comentários (os menos gráficos) que centenas de cozinheiras dizem ter de ouvir todos os dias nos corredores das cozinhas mais prestigiadas de França, a nação baluarte da cozinha moderna e da sofisticação à mesa.
Estes e outros comentários não são ficção, foram mesmo ouvidos por mulheres que decidiram contar as suas histórias de abuso — psicológico e muitas vezes sexual — à conta de Instagram “Je dis non chef”, criação dedicada ao combate e denúncia de violência verbal, física e sexual dentro de brigadas de cozinha, fundada por Camille Aumont Carnel (ex-aluna da prestigiada escola de cozinha Ferrandi, em Paris) e pela jornalista freelancer Nora Bouazzouni. Esta plataforma foi criada há pouco mais de um ano e desde essa altura que se dedica a apoiar jovens mulheres cozinheiras que pelos dia de hoje, mais que nunca, ganharam novo alento no combate à discriminação sexual nas cozinhas: de tal forma que o Le Figaro, por exemplo, já faz o paralelismo com o #MeToo. O que aconteceu agora, então, para esse movimento ganhar novo fôlego?
A versão francesa da revista Elle conta que já em 2014 surgiam vários depoimentos a relatar a normalização do clima de violência sexual dentro do setor da restauração profissional em França. Na altura, conta a mesma publicação, os episódios foram passando despercebidos aos olhos da imprensa especializada, sempre muito zelosa do prestígio quase sacrossanto da grande cozinha francesa e do seu herói, o rigoroso e intransigente chef. Agora, porém, graças ao impulso dado pela mediatização de casos como o de Harvey Weinstein ou a crescente luta pelos direitos civis que ressurge nos EUA, a situação está diferente.
No passado dia 12 de agosto, através de um post na sua conta oficial de Instagram, a prestigiada jornalista gastronómica Julie Mathieu, chefe de redação das publicações “Fou de Pâtisserie” e “Fou de Cuisine”, exteriorizou a sua raiva e estupefação perante as histórias que lhe tinham chegado aos ouvidos. “Há algumas semanas ficámos chocados ao saber que um jovem chef conhecido na gastronomia parisiense seria culpado de perseguição e agressão sexual a várias mulheres que trabalhavam ou com ele ou no mundo da gastronomia”, escreve. “Cruzámos várias informações, procurámos mais depoimentos, e as alegações parecem confirmar-se”, continuou, antes de saudar a coragem das vítimas que se atreveram a romper o silêncio. Enquanto Mathieu disse estar agora à espera que a justiça faça o seu caminho, foi decidido que as publicações que orienta não voltariam a falar mais “desse cacique”, que nunca mais será convidado para eventos que a tivessem como responsável. “O universo da culinária e da gastronomia não é um mundo à parte. Esse tipo de violência tem de parar e as ações deste homem devem ser condenadas”, remata.
Tanto Mathieu como Muriel Tallandier, a outra responsável por estas publicações, acordaram também que não revelariam o nome do homem em questão “por respeito à palavra das vítimas, ao trabalho da justiça e ao que resta da presunção de inocência”, esclarecendo que são também “fundamentalmente contra os tribunais populares”.
Ainda durante este mês de agosto, outra publicação gastronómica francesa, a Atabula, publicou um extenso artigo que se debruça sobre este tema e que veio acicatar ainda mais os ânimos. As identidades dos agressores, quase sempre, continuam sem ser reveladas — seja por medo de represálias ou simplesmente porque fazendo-o corre-se o risco de comprometer investigações legais e processos judiciais. Porém, cada vez se vão sabendo mais e mais pormenores de várias histórias que revelam o clima tóxico que se vive nas cozinhas francesas: uma delas aconteceu na mais recente cerimónia de entrega de estrelas Michelin em França.
Era uma noite de festa para o setor: a Michelin organizava a sua habitual cerimónia de lançamento do seu novo guia. Depois de divulgados os resultados, um chef três estrelas, conta o artigo não revelando as suas fontes, caminha embriagado, passa por uma rapariga e sem qualquer tipo de interlúdio ou conversa apalpa-a. A mulher vira-se e dá-lhe um tabefe. Meio atordoado, o chef afasta-se e começa a circular pela sala.
O episódio pode parecer um caso isolado mas, segundo o que cada vez mais começa ao vir ao de cima, é o reflexo de uma cultura onde os limites para com as mulheres são muitas vezes ultrapassados. O caso de Bonny Peter, uma das primeiras raparigas a contar pormenorizadamente a sua história — a franco-vietnamita Celine Pham já o tinha feito também mas não tão explicitamente, numa entrevista à Vanity Fair –, é um exemplo de como esta cultura pode levar a casos gravíssimos.
Através da sua conta de Instagram, Bonny Peter conta que certa noite, quando já estava deitada no seu quarto — vivia numa casa partilhada com colegas — o seu chef, alegadamente um restaurateur reputado no universo francês, aparece do nada e por duas vezes tenta violá-la. Se Bonny não tivesse gritado, o seu colega do quarto ao lado provavelmente não teria conseguido evitar um desfecho mais dramático. O artigo da Atabula avança que o protagonista desta história terá sido o mesmo que foi evocado por Julie Mathieu no seu polémico post.

A forma como a mulher cozinheira tem sido tratada na gastronomia francesa está a ser alvo de imenso escrutínio via redes sociais (Foto: Istock)
Apalpões, comentários machistas ou de índole sexual, agressões, discriminação de género, pedidos de favores sexuais em troca de benefícios e, em casos extremos, violações: é este o cenário que vai ficando cada vez mais explícito quando se fala do panorama das mulheres cozinheiras no universo gastronómico de topo em França. A chef pasteleira mencionada no artigo do Atabula preferiu ser referida apenas como Anaïs (trabalha num restaurante estrelado em Paris), revela que “sempre se sofreu com este tipo de sexismo” e que os exemplos são de tal forma constantes que “é quase impossível recordá-los a todos”. Heidi, responsável de sala com mais de 15 anos de experiência, diz também que a situação é tão generalizada que até o pessoal que serve às mesas e os gerentes têm comportamentos iguais.
Identificar uma causa específica para este tipo de ambientes não é fácil porque eles não nascem só de um fator mas sim de uma grande mistura. A cozinha profissional é um universo quase totalmente dominado por homens e isso, juntamente com a sua forte estrutura hierárquica, é terreno fértil para o perpetuar de uma cultura de medo no relacionamento entre os vários patamares dessa pirâmide. A juntar a isso há ainda a crescente pressão comercial e de marketing que obriga os grandes chefs a serem protegidos a todo o custo, sob pena de muita gente perder muito dinheiro.
Segundo dados de um inquérito do Parabere Forum, uma rede internacional de mulheres que trabalham no ramo de restaurantes, apenas 35% dos cargos de chefia e sub-chefia de cozinha no mundo inteiro não são ocupado por homens, havendo ainda uma disparidade salarial em que, em média, um cozinheiro recebe mais 28% que uma cozinheira. Dados como este podem fazer crer que a submissão é uma condição sine qua non para o desenvolvimento da carreira feminina. Em entrevista à publicação francesa Neon, Camille Aumont Carnel, uma das responsáveis pelo instagram “Je Dis Non Chef”, refere que essa submissão é incutida logo no início da formação base de qualquer cozinheiro:
Somos ensinados a dizer ‘sim chefe’ o tempo todo, a venerá-los [chefs]. Explicam-nos que teremos de estar prontos para fazer qualquer coisa para os satisfazer em vez de nos ensinarem a questionar, em vez de nos falarem sobre a violação ou o assédio, duas realidades demasiado comuns nesta comunidade.
Os desenvolvimentos recentes mostram que aos poucos o véu está a ser levantado e já há muita gente a concordar com Alexia Duchêne, jovem cozinheira que foi semifinalista na edição francesa do programa “Top Chef” e que já falou várias vezes sobre este tema, que diz que é preciso continuar a falar sobre este assunto porque em breve “estes grandes chefs vão cair”, as pessoas vão querer “deixar de ir aos seus restaurantes” porque “eles na verdade são uma grande merda”.
Camille Aumont Carnel estima que dezenas de grandes líderes da gastronomia vão ser afetados por estas acusações, que em breve vão aumentar e ganhar mediatismo. “Cada vez se fala mais sobre estes homens, os seus nomes estão a circular pela comunidade mesmo tendo em conta que são adorados e aparecem constantemente nas notícias”, exclama. Apesar de ainda reinar o silêncio — “Estes chefs são protegidos porque se tombarem põem em causa a influência gastronómica de França que, convém não esquecer, gera muito dinheiro a muita gente” –, a maré pode estar prestes a mudar. Para “a vergonha mudar de lado”, diz Carnel, é preciso proteger e continuar a dar voz às mulheres que cada vez mais se começam a chegar à frente — e, nesse aspeto, as redes sociais e a atenção dos media “é a única maneira de os derrubar”. Ainda vai demorar até conhecermos quem são os tais grandes chefs no olho do furacão? Carnel responde: “Será em breve, muito em breve”.