75 anos. A idade de Sérgio Godinho e mais ou menos o tempo psicológico passado desde o último concerto a que fomos. A Covid-19 instalou-se no mundo como um companheiro de casa abusado, um indesejado dependente a cargo. À semelhança daqueles casais que se lamentam, nas festas de anos, de nunca mais terem saído à noite depois do primeiro filho, deixámos, coletivamente, de poder ir a concertos, ao cinema, ao futebol. A discoteca é uma recordação cada vez mais vaga de uma vida que, em tempos, levámos. Temos horas para chegar a casa e preocupações de crescidos. Tudo no devido lugar. Mas, como o bom senhor Sérgio dirá, com o seu rasgo, lá para meio da noite, “cuidado com as limitações”.
Teatro Maria Matos, Lisboa, na última noite de agosto. As ruas continuam demasiado desertas mesmo para esta altura do ano, mas, à entrada da sala, já toda a gente parece habituada aos novos costumes: chega cedo, deixa o espaço que lhe corresponde intuitivamente a dois metros de distanciamento; a máscara já não parece estranha na cara de ninguém. Ainda não é um concerto como seria noutras salas, mais descontraídas – de pé, com cantorias e abraços, copos na mão – mas, na verdade, não é assim tão diferente de outro que aqui acontecesse antes do fim do mundo. E, porém, não tem qualquer coisa de viagem aérea? Tem. Os lugares marcados, a preocupação do staff com as normas de segurança, o aviso de que, no final, devemos permanecer nos nossos lugares até indicação em contrário.
Poucos minutos depois das 21 horas aprazadas, Sérgio Godinho sobe ao palco, depressa seguido pelos Assessores, os músicos que o acompanham: João Cardoso, Sérgio Nascimento, Miguel Fevereiro, o outro Nuno Espírito Santo e Nuno Rafael. O público canta-lhe “Parabéns a Você”, meio abafado pelas máscaras, outro meio abafado pelo desconforto de sequer tentar – um registo que se manterá em vigor até final de noite, encaixotando qualquer bom refrão.
Declaração do artista enquanto igual a ele mesmo, começa com “Pode Alguém Ser Quem Não É?”; depois, “A Deusa do Amor”. Fala do prazer de regressar ao palco passado meio ano de vida interrompida. Dali, diz, nem vê os lugares vazios (mas eles existem, cuidadosamente marcados e guardados pelo pessoal de sala, que está esgotada nas cadeiras que lhe foi permitido vender). Segue-se um clássico, “Às Vezes o Amor”, mas é inevitável ser mais tocado pelo tema seguinte, que ouvimos pela primeira vez: “O Novo Normal”, escrito durante o confinamento e que fala de coisas que ainda todos precisamos de ver bem tratadas pelos artistas, gente que tem ficado para trás como profissão “não essencial”, mas que, se aqui não estivesse para nos ajudar a mastigar o mundo e entendê-lo, quão mais insuportável não seriam ainda, tantas vezes, a dor ou o absurdo? “Mantém as distâncias”, canta, controla “essas ânsias de beijos e abraços”, “escolhe bem as audácias”.
Depois, vêm “Cuidado com as Imitações”, com a pertinente declinação de que fizemos aquele elegante spoiler ao início, “Benvindo, Sr. Presidente” e a “Balada da Rita”, com a qualidade rara das coisas que são belas para sempre. A voz do aniversariante não está no seu melhor depois de tamanha paragem, mas está certa, como de costume. “Mariana Pais, 21 Anos”, dá a deixa para lembrar José Mário Branco, o maior dos parceiros musicais de Sérgio Godinho, desaparecido em novembro passado, que é como quem diz, um pouco antes disto tudo (e que diria ele disto tudo?). “Ele está a preencher todos os lugares vazios nesta sala”, e até esses parecem aplaudir, serena, sentidamente. “Dancemos no Mundo”, com os seus versos felizes “eu só queria dançar contigo / sem corpo visível” que ganham, de repente, novo e redobrado sentido, ganha o troféu de momento mais feliz da noite, antes de dar entrada a um conjunto de músicos amigos que, armados de instrumentos de sopro, põem a sala a cantar, pela segunda vez, os “Parabéns a Você”.
Seguimos viagem entre temas recentes e algumas paragens obrigatórias dessa vida profícua que nos juntámos ali para celebrar. “Tipo Contrafacção”, “Espectáculo”, “O Velho Samurai” e “O Fugitivo”, insuspeita canção de ’86, saída de “Na Vida Real”, que a interpretação de Godinho transforma em ponto alto do aniversário:
“Um homem vive
contra o sangue
que derrama
e diz: vale a pena?”
“Noite e Dia”, “Grão da Mesma Mó” e o épico “Liberdade”, cantado no tom mais… libertário dos últimos tempos, fecham o concerto antes dos obrigatórios encores. O belo “Tudo no Amor”, fruto da parceria com os Clã (certamente uma das mais reciprocamente enriquecedoras da música portuguesa), abre esses dois rounds extra, depois derramados numa sequência de hits à procura do K.O.: “Lisboa que Amanhece”, “Com um Brilhozinho nos Olhos” e “O Primeiro Dia”, que, por um sortilégio qualquer, continua a arrepiar ao primeiro verso, não importa quantos milhares de vezes a tenhamos ouvido.
Mas seria talvez demasiado fácil dizer que este dia, o do regresso aos palcos como mais um pouco do nosso regresso à dita normalidade, seria o primeiro do resto das nossas COvidas. Provavelmente por isso, este senhor septuagenário de estatura modesta e sombra enorme prefere terminar em tom menos solene, com o “Coro das Velhas”, a primeira destas quatro noites de celebração.
Parabéns, senhor Godinho. Cá se vai andando, c’o a máscara entre as orelhas.
Alexandre Borges é escritor e argumentista