O som do vento é sempre igual nos filmes de Fellini. É o som que o vento fazia na Rimini natal do realizador, e que ele quis que fosse sempre o mesmo, qualquer que fosse o filme, independentemente de onde se passasse e da época em que se situasse. E está, é claro, omnipresente em “Os Inúteis” (1953), que repõe hoje em cópia restaurada, incluído no ciclo Essencial Fellini, que assinala os 100 anos do nascimento do autor de “A Estrada”. É um filme onde Fellini tem um pé no neo-realismo, embora fosse sair rapidamente deste movimento após “O Conto do Vigário” (1955) e outro na comédia italiana, como no anterior, o fracassado “O Sheik Branco”. Já “Os Inúteis” conheceu o sucesso, ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza e concorreu ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

[Veja o “trailer” de “Os Inúteis”:]

Quem conheceu as cidades de província portuguesas nas décadas de 50 e 60, viu o equivalente nacional destes “inúteis” (“vitelloni”, no título original), filhos da classe média e média baixa que não saíram da terra para seguirem estudos superiores ou procurarem trabalho. Ficaram a viver com os pais ou outros familiares e, já à beira dos trinta e sem emprego nem vontade de o procurar, passavam os dias a flanar, nos cafés, a jogar bilhar, nos bailes e a fazer a corte às raparigas que lhes passassem à frente, furtando-se a compromissos e responsabilidades.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Escrito por Fellini e por Ennio Flaiano e Tullio Pinelli, e situado implicitamente em Rimini (embora não tivesse sido lá rodado), “Os Inúteis” é um dos filmes muito autobiográficos do realizador, que se figura como um dos cinco amigos do grupo protagonista, o tímido Mauro (Franco Interlenghi) e até deu outro dos papéis principais ao seu irmão, Riccardo Fellini (Riccardo, o da voz de ouro). Os restantes são o mulherengo Fausto (Franco Fabrizi), que engravida Sandra (Leonora Ruffo), a irmã de Mauro, e tem que casar com ela; Alberto (Alberto Sordi, cuja carreira arrancou graças a este papel), o bufão e eterno miúdo crescido, e Leopoldo (Leopoldo Trieste), candidato a escritor e autor de dramalhões insofríveis.

[Ouça o tema musical do filme:]

Além de uma pintura realista da vida numa cidade italiana do interior no pós-II Guerra Mundial e no dealbar do “milagre económico” transalpino, “Os Inúteis” é também o retrato tragicómico de parte de uma geração de jovens imaturos. Desocupados e estacionados numa rotina vazia e parva de cafés, farras, deambulações e mulheres, recusam enfrentar os problemas da existência adulta associados ao casamento, à construção de uma família, ao trabalho e à convivência social. Mesmo que, de vez em quando, se sintam frustrados e até possam ter um repente de consciência (as conversas de Mauro com Guido, o miúdo que se levanta às três da manhã para ir trabalhar nos caminhos de ferro, e que o deixa com vergonha de ser como é e de viver como vive).

[Veja uma sequência do filme:]

Fellini não prega moral nem censura os cinco “inúteis”. Observa-os, acompanha-os, mostra-os com os seus (grandes) defeitos e (algumas) qualidades, ilusões e desapontamentos, e não poderia ser de outra maneira, porque afinal também se inclui entre eles. E tal como Fellini deixou Rimini e apontou a Roma para fazer pela vida, também Mauro, o seu representante em “Os Inúteis”, é o único a ter força de vontade para uma manhã, bem cedo, sem dizer nada a ninguém, apanhar o comboio e partir para longe, à procura do seu futuro, rompendo com a inércia que o mantinha ali, e ali deixará para sempre os outros quatro. E essa partida dá-nos um típico momento de fantasia felliniana: o comboio que “passa” pelos quartos onde dormem ainda familiares e amigos.

[Veja uma sequência do filme:]

O realizador queria rodar uma continuação de “Os Inúteis”, intitulada “Moraldo na Cidade”, onde este teria várias aventuras e levaria pontapés da vida na grande cidade onde se instala. O projeto nunca foi para a frente, mas Moraldo haveria de se manifestar, na pele de outras personagens, em futuros filmes de Fellini. Há algo dele no Marcello Rubini do Marcello Mastroianni de “A Doce Vida”, no jovem protagonista de “Roma de Fellini” que chega deslumbrado à capital, ou no indolente e “bon vivant” Lallo, o tio do miúdo de “Amarcord”. E em todos estes filmes ouvimos aquele vento fantasmagórico saído do fundo da infância e da juventude de Fellini, numa cidadezinha na costa do Adriático.

“Os Inúteis” repõe esta quinta-feira, dia 3, no Espaço Nimas, às 18.30, e fica em cartaz até dia 11; também no Cinema da Villa, em Cascais, e no Cinema Trindade, no Porto