Em “Tudo Acaba Agora”, estreado na Netflix, Jessie Buckley interpreta uma rapariga que tanto se pode chamar Lucy, como Lucia ou Louise, e que tanto pode ser estudante de física quântica como de cinema ou de literatura, ou empregada de mesa, e namora Jake (Jesse Plemons), que não se percebe bem o que faz. Ambos vão fazer uma viagem de carro num dia invernoso para a rapariga conhecer os pais de Jake, que vivem numa quinta e, pelo caminho, Jake ouve a namorada pensar, entre outras coisas insólitas. Chegados à quinta, as coisas tornam-se ainda mais bizarras. Os pais de Jake (Toni Collette e David Thewlis) tanto aparecem com a idade que têm, como quando eram mais novos ou serão em mais velhos, o cão da família tanto está vivo e a dar à cauda como morto e com as cinzas numa urna, e a rapariga sofre perturbações de identidade depois de comer tronco de chocolate.

[Veja o “trailer” de “Tudo Acaba Agora”:]

“Tudo Acaba Agora” é realizado por Charlie Kaufman baseado num livro do canadiano Ian Reid, e a única coisa que é certa aqui, é que tudo é incerto. Ao contrário dos filmes que escreveu para realizadores como Spike Jonze (“Queres Ser John Malkovich?”, “Inadaptado”) ou Michel Gondry (“Natureza Humana”, “O Despertar da Mente”), onde a sua imaginação extravagante e a sua veia surrealista estavam ao serviço de uma história, obedeciam a uma lógica narrativa e tinham um sentido – por mais arrevesado que fosse – no final, em “Tudo Acaba Agora”, Kaufman, muito mais do que nas duas fitas que assinou antes desta, “Sinédoque, Nova Iorque”, e “Anomalisa”, pratica um cinema da desconstrução mais extrema — e da mais exasperante opacidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja uma entrevista com Charlie Kaufman:]

Voltamos a detetar nesta fita vários dos temas favoritos e das preocupações recorrentes do argumentista e realizador: a instabilidade da identidade, a pouca fiabilidade da memória, a prestidigitação temporal, a porosidade entre a realidade e o sonho acordado. Mas aqui, estão diluídos num filme formal, estrutural e intelectualmente movediço, fugidio e indecifrável, crivado de citações e referências ora eruditas ou da cultura popular, de Wordsworth à publicidade a gelados, do cinema de John Cassavetes a David Foster Wallace e aos musicais da Broadway, interrompido a certa altura por uma breve e desconcertante paródia (ou será uma homenagem?) a Robert Zemeckis. Vogamos na mais completa perplexidade sem chegarmos a lado nenhum.

[Veja uma entrevista com Jesse Piemons e Jessie Buckley:]

A verdade é que Lucy/Lucia/Louise, Jake, os seus pais, o misterioso zelador de liceu que aparece intermitentemente e as várias figuras secundárias de “Tudo Acaba Agora”, não são mais que vagos fantoches que Charlie Kaufman manipula ao longo das mais de duas horas deste opaco, autocondescendente e enfadonho exercício conceptual, onde acumula trivialidades de angústia cósmica, lugares-comuns da inquietação ontológica e malabarismos temporais, e dá abundante milho aos pardais dos adeptos da ambiguidade e do relativismo. Isto enquanto canibaliza situações, atmosferas e clichés do filme de rutura romântica (Lucia/Lucy/Louise está a pensar acabar a relação com Jake), do “thriller” de terror (a invernia, a casa isolada e sinistra dos pais de Jake) e até do musical (“Oklahoma”, vá lá saber-se porquê).

[Veja uma cena de “Tudo Acaba Agora”:]

O efeito de estranheza permanente que Kaufman quer que seja o princípio orientador do filme acaba por ficar a funcionar no vazio, e “Tudo Acaba Agora” fica nu na praça pública. É um equívoco cinematográfico, narrativo e intelectual, que cultiva a obscuridade pela obscuridade e esconde (mal) a sua superficialidade por trás de uma pose de complexidade oblíqua e rebuscada, e de cerebralidade laboriosa e exibicionista. Charlie Kaufman é muito inteligente, diabolicamente criativo e imaginativo em jacto contínuo, mas desta vez não conseguiu encontrar o melhor formato para o demonstrar, ou para arrumar, articular e expressar o que lhe vai na hiperativa cabeça. “Tudo Acaba Agora” foi arduamente encriptado para ocultar que afinal não esconde mistério nenhum.

“Tudo Acaba Agora” está em exibição na Netflix