Já foi uma próspera urbe industrial do norte de França, mas Roubaix é hoje uma das cidades mais problemáticas deste país, em acelerada decadência urbana, com altos índices de desemprego, pobreza e criminalidade, e uma população onde abundam os emigrantes europeus e do norte de África. Roubaix é também a cidade em que nasceu o realizador Arnaud Desplechin e onde ele regressou para rodar “Roubaix, Misericórdia”, passado nos seus bairros mais degradados e perigosos, e nas suas ruas mais feias e tristonhas. A polícia não tem mãos a medir nem na noite de Natal, assaltam-se padarias à mão armada para roubar 30 euros e há pessoas que põem fogo ao seus carros e fingem ter sido agredidas para poderem receber o seguro.

[Veja o “trailer” de “Roubaix, Misericórdia”:]

O nosso guia em “Roubaix, Misericórdia” é o comissário Daoud (Roschdy Zem), que comanda uma esquadra numa das zonas mais duras da cidade. Daoud é filho de emigrantes argelinos e ficou em França quando quase todos os seus familiares preferiram regressar à Argélia. Calmo, lacónico, solitário, apaixonado por cavalos de corrida, atacado por insónias e profissional até à medula, Daoud tem também um dom que roça o sobrenatural: sabe sempre quando um suspeito é culpado ou inocente. É uma qualidade nascida de muita experiência das ruas onde viveu desde miúdo e que agora vigia e protege, e de um grande conhecimento quer de Roubaix, quer da condição humana.

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[Veja uma entrevista com o realizador Arnaud Desplechin:]

“Roubaix, Misericórdia” inspira-se num crime real ocorrido na cidade nos primeiros anos deste século, e é devedor – sobretudo no que respeita aos depoimentos das assassinas, transcritos quase literalmente – de um documentário para a televisão sobre o mesmo, “Roubaix, Comissariat Central, Affaires Courantes”, de Mosco Boucault. Mas ao contrário do que possa parecer até certa altura, o filme de Desplechin não é um daqueles policiais urbanos à francesa, um “polar” de “suspense” e ação, como os faziam um Jean-Pierre Melville ou um Henri Verneuil, e eram interpretados por atores tão característicos e carismáticos como Jean Gabin, Lino Ventura, Yves Montand ou Alain Delon.

[Veja uma sequência do filme:]

Arnaud Desplechin está mais interessado em seguir, com o máximo de minúcia e realismo nu e cru, e dispensando o romanesco, todos os passos de uma investigação a um fogo posto e ao assassínio de uma octogenária. “Roubaix, Misericórdia” é um filme de ambiência policial “true crime”, mas com uma grande mochila de observação e preocupação social, onde o realizador associa o crime e a míngua material e moral às condições de vida degradantes (“Só ficou aqui a miséria”, diz Daoud a certa altura). A prova: as duas raparigas, Claude e Marie (Léa Seydoux e Sara Forestier), alcoólicas e toxicodependentes, que estrangulam e roubam uma vizinha idosa quase tão pobre e deixada ao Deus-dará como elas.

[Veja uma sequência do filme:]

Desplechin presta também uma discreta homenagem ao trabalho aturado e ingrato da polícia (raros são os filmes franceses recentes tão simpáticos e compreensivos para com as forças policiais como este). E é pena que não tenha “puxado” mais por personagens como a do jovem e dedicado tenente Cotterel, católico devoto que encara o seu trabalho como uma missão, ou subenredos como o do violador do Metro, que é esquecido a meio e resolvido numa penada no final. Ele está de tal forma fixado em Claude e Marie, nas suas personalidades, na sua relação, nos detalhes mais ínfimos da reconstituição do crime e na revelação dos motivos, que a certa altura a fita ameaça passar de absorvente a fastidiosa.

Tal como sucede noutros “polars” clássicos passados em Paris ou noutras cidades francesas, Roubaix é uma personagem de corpo inteiro e não apenas um cenário, isto graças à câmara de Irina Lubtchansky, filha de William Lubtchansky, um dos grandes directores de fotografia do cinema francês. Roschdy Zem interpreta o comissário Daoud na boa linha dos “flics” experientes, decentes e desencantados do género, e Léa Seydoux e Sara Forestier são magníficas no casal de lésbicas, capazes de matar por umas migalhas alguém quase tão desgraçado como elas, com  o cansaço e a derrota escritos nas olheiras fundas, nas rostos drenados de cor, no olhar tão duro como as ruas mais desapiedadas de Roubaix.