Título: Contos Completos
Autor: Graça Pina de Morais
Editor: Antígona
Páginas: 312
Preço: 17,00€

A capa de “Contos Completos”, de Graça Pina de Morais (Antígona)

A antologia que reúne todos os contos, editados e inéditos, de Graça Pina de Morais traz uma nova tentativa por parte da Antígona de resgatar a escritora portuense ao esquecimento a que tem sido votada. Importa talvez por isso, a reboque desta novidade literária, tentar compreender melhor quer os motivos de interesse que há na leitura da obra da escritora quer o que levou a esta tão evidente marginalização.

Em primeiro lugar, Graça Pina de Morais tem inúmeros pormenores que revelam uma extraordinária atenção aos detalhes banais da vida, como vemos, por exemplo, em “Sala de Aula”, quando se fala da alegria que as jovens estudantes sentiam nas ausências forçadas da professora, uma alegria que se devia, explica a escritora, à incapacidade das jovens em conceber a doença, a morte ou o simples cansaço da vida. Esta alegria é, aliás, apresentada em contraponto à amargura e ao azedume da professora em relação à inconcebível juventude das suas pupilas. Também neste conto (porventura o melhor da antologia a par dos dois últimos em que a escritora traz à memória, por bizarro que possa parecer, as histórias de Flannery O’Connor), é assinalável a descrição de como o amor, que as jovens estudantes tão acérrima e toscamente perseguiam fora das aulas, as intimidava sobremaneira quando transpunha a porta da sala, levando-as a estoirar em risos nervosos.

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Existe também na ficção curta de Graça Pina de Morais uma obsessão com a busca frustrada de uma resposta levantada pela questão da fé. A escritora não parece nunca ser capaz de tentar encontrar maneira de saciar o seu ímpeto religioso. No entanto, a posição de Graça Pina de Morais aparenta ser a de um agnosticismo militante. Em certa medida, esta posição pode ser comparada à de José, o protagonista de “Os Semideuses”. José, sabemos na última página da história, “gostava às vezes de entrar nas igrejas, não pelos santos, mas pelos olhos que lá tinham estado fanaticamente pregados” (p. 28). Mais do que encontrar o Deus todo-poderoso criador do céu e da terra, das coisas visíveis e invisíveis, Graça Pina de Morais parece preocupada com a busca pelo desesperado e aflito impulso humano que deposita todas as suas esperanças de felicidade num pai cuja face teima em não se revelar.

No entanto, a passagem acima citada de “Os Semideuses” revela uma outra fixação, bem menos interessante, da autora de A Origem. A sinédoque que aqui encontramos, que toma a parte (os olhos) pelo todo (os fiéis), é em si mesma reveladora de uma ideia que, por algum motivo, parece ser bastante cara à escritora. Graça Pina de Morais atribui uma importância obsessiva à descrição dos olhos das suas personagens, uma descrição repleta de adjetivos, que raramente são de índole física. Os olhos dos intervenientes nestas histórias (e cingindo-nos apenas às primeiras cem páginas) ora são brilhantes, ora idiotas, ora adolescentes, ora zombeteiros, ora estúpidos, ora bondosos, ora vagos, ora desencantados, ora espantados ora gelados, mas infalivelmente revelam a natureza das personagens em questão, não como espelhos da alma, mas como substitutos dessa mesma alma. Esta obsessão por aquilo que dizem os olhos dos protagonistas tem desde logo dois consideráveis problemas, sendo o primeiro, evidentemente, a falta de verdade e, pior, de subtileza que subjaz a esta ideia tão cansativa. No entanto, o mais cómico dos problemas desta personificação dos olhares é o que vemos acontecer em “Desencontro” quando, inopinadamente, um cego surge num bar, levando a esta indagação do narrador: “Que pensaria ele? Naturalmente, nada” (p. 107). Assim compreendemos que uma personagem invisual, cujo olhar, por estar avariado, é incapaz de albergar a alma do seu possuidor, deixa-a por isso escapar, levando a que os deficientes visuais se convertam, de modo obviamente inaceitável, em animais irracionais, excluídos do sopro divino, visto que a transformação do olhar não em um reflexo do cérebro mas numa das suas partes essenciais leva, evidentemente, à equiparação de um humano com olhos não funcionais a um ser não pensante.

Outro problema destas histórias e que talvez tenha conduzido à sombra onde hoje se esconde o nome da escritora é a incapacidade que Graça Pina de Morais revela repetidas vezes ao nível da construção de discurso direto. Os diálogos que uma e outra vez encontramos nunca são minimamente verosímeis, parecendo apenas continuar o tom dos contos, agora antecedendo-os de um travessão. Não deixamos por isso de sentir um certo constrangimento quando vemos, em “A Fé”, Inês pedir ao seu marido, Henrique, que a leve ao cinema por estar ‘neurasténica’. Dada a réplica hesitante de Henrique em relação a tão claro diagnóstico, Inês vê-se na obrigação de, num tom mais adequado a um artigo académico do que a uma conversa conjugal, lhe explicar que talvez este não se tivesse apercebido da situação por Inês ser uma mulher “muito sólida e, portanto, as variações de humor nunca transparecem através da minha solidez” (p. 248).

Finalmente, existem também demasiadas ideias e protagonistas reciclados ao longos destas mais de trezentas páginas, sendo tudo isto ruminado incessantemente sem que se saia do lugar (veja-se, por exemplo, os exageros melodramáticos das várias mulheres destes contos, vítimas inocentes de um excesso de sensibilidade que as eleva acima dos restantes mortais, e que gostariam apenas de, pobres coitadas, ser capazes de partilhar um pouco da simplicidade humilde de um povo que, tal e qual a pobre ceifeira do célebre poema de Pessoa, passa ao lado das grandes questões que as atormentam; ou vejamos também a descrição da nitidez das pessoas em “Desencontro” e em “A Fé”; ou, apenas para dar mais um exemplo, as relações antigas dessas mesmas mulheres com homens loucos que, em dois destes casos, levam as protagonistas a serem encontradas alcoolizadas, seminuas e desgrenhadas na privacidade dos seus lares). Esta repetição contínua de ideias e personagens, para que Pedro Mexia já eufemisticamente tinha apontado num artigo recente no Expresso, talvez seja compreensível se considerarmos que parte da obra da escritora não foi publicada em vida e que, por isso, talvez se possa especular (desconhecendo quase por completo a biografia da autora) que não houvesse da sua parte a intenção de os publicar coligidos. No entanto, e sem com isso querer beliscar o notável trabalho de edição da Antígona, a impressão que não deixamos de ter ao ler estas histórias, uma após a outra, é, por vezes, a de um maçador déjà vu.

joaopvala@gmail.com