A um passo do mar, Matosinhos foi o epicentro da indústria conserveira a norte. Só naquela zona estavam instaladas 52 fábricas de conversas de peixe, hoje restam apenas duas e uma delas é a Pinhais. A empresa surgiu em 1920 pela mão de António Pinhal, natural de Espinho, e inicialmente dedicava-se à salga do peixe num pequeno armazém. Com a construção da fábrica, a marca passou a produzir conservas de sardinha, cavala e carapau em azeite, azeite picante, tomate e tomate picante. “Ainda mantemos o processo original. Do tratamento do peixe à embalagem, tudo é feito à mão”, garante António Pinhal, neto do fundador e atual responsável pelo negócio da família que vai na terceira geração.

Tinha apenas oito anos quando ganhou a sua primeira memória ligada à Pinhais. De mão dada com o pai, viu chegar ao cais de Matosinhos traineiras carregadas de peixe num sábado de manhã. “Fazia sempre isso ao fim de semana, era engraçado ver as gaivotas a aproximarem-se, era sinal de que havia muito peixe”, recorda ao Observador. Mais tarde, estava no quarto ano do curso de economia na Universidade do Porto quando o pai o chamou para trabalhar com ele. “O meu primo era o braço direito dele, ficou doente e chamou-me. Ia à lota comprar o peixe, fazia a parte comercial e de exportação. Só quando o meu primo faleceu é que entrei diretamente para os quadros da empresa e, como estudante trabalhador, acabei o curso de economia à noite.”

António Pinhal é o neto do fundador das Conservas Pinhais e é a cara da fábrica em Matosinhos

Durante uma década, António foi responsável por escolher a dedo a matéria prima das conservas, função que lhe permite distinguir hoje a olho nu a qualidade de uma sardinha. “A sardinha pescada às 4 ou 5 da manhã é melhor do que a pescada à meia noite, consigo perceber isso pelos olhos, pelas guelras e pelas escamas”, conta, acrescentando que era também na base de madeira das camionetas que antigamente transportavam os cabazes de peixe que podia tirar a verdadeira prova dos nove. “Pegava na sardinha e atirava-a para a madeira, se ela saltasse tinha sido apanhada de manhã, se ela ficasse quieta era porque tinha sido pescada mais tarde.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando terminou o curso de economia, já tinha várias propostas de emprego, mas o pai disse-lhe: “ou a banca ou a fábrica”. “O bichinho entranhou-se em mim e acabei por ficar aqui. Não sei se fiz bem ou mal, mas não me arrependo.”

A fábrica onde se rezava o terço todas as tardes e que não foi à falência por causa do azeite

Enquanto a maioria das conserveiras se industrializaram ao longo dos anos, a Pinhais decidiu manter-se fiel à produção artesanal, mesmo apesar das várias crises. “Havia um fornecedor de azeite português que vendia o produto muito mais barato e um dia perguntou ao meu pai se não queria comprar um carro, que naquela altura custava uns 100 contos, com o dinheiro que poupasse. O meu pai não tinha carta nem sabia conduzir e, por isso, recusou.” Foi assim durante quatro anos, até que se descobriu que esse azeite estava adulterado. “Os contentores que as outras firmas distribuíam para os Estados Unidos vieram todos para trás e a crise da indústria conserveira começou aí.”

António Pinhal lembra-se bem do dia em que o pai teve a certeza de que estava no caminho certo e prometeu nunca comprometer a qualidade das conservas. “Tinha uns 9 anos, estava a jogar futebol no jardim lá de casa e parti três vidros. Pensei que estava perdido e que ia levar uma tareia quando o meu pai chegasse a casa. Depois de a minha mãe lhe contar o que se tinha passado, ele disse: “deixa-o partir os vidros todos, eu não fui à falência”.

4 fotos

Em 1935, a Pinhais lança a Nuri, uma marca com os mesmos produtos, mas direcionada para o mercado internacional. “Um dos sócios da empresa era o meu tio, um relações públicas que falava várias línguas. Foi ele que descobriu os primeiros mercados internacionais e quando foi para Espanha conheceu um espanhola muito bonita chamada Nuri, foi assim que decidiu batizar a marca.”

Durante os 40 anos que está ao leme da conserveira, António Pinhal confessa que o momento mais difícil foi quando surgiu a quota da pesca pela União Europeia. A época áurea em Matosinhos era de junho a outubro, o que obrigou o responsável a ir comprar peixe a Sines, Peniche, Figueira da Foz, Espanha ou França. Nada que o demovesse ou o fizesse perder a fé, afinal a família Pinhal é profundamente católica e no escritório de António são visíveis latas antigas, fotografias da família a preto e branco, mas também santos e velas.

“O meu pai ia a missa duas vezes por dia e até há três anos rezávamos o terço meia hora antes do pessoal sair.” Pelas 16h30, alguém colocava uma cassete no gravador e os trabalhadores trocavam a tesoura do peixe pelo terço. “Deixámos de o fazer quando contratámos pessoas com outras religiões, não fazia sentido estarmos a impor isso. Antigamente era diferente, as pessoas eram mais devotas, principalmente quando falamos de uma comunidade piscatória. Os tempos mudam e temos que aceitar essas mudanças.”

Toca-se o sino, canta-se o fado e enchem-se latas com orgulho

Quem entra no número 700 da Avenida Menéres, em Matosinhos, consegue adivinhar que a marca tem mesmo um século de vida pelo chão em mosaico hidráulico, a escadaria de madeira em forma de um peixe, o logótipo com Matosinhos escrito ainda com Z ou as cravadeiras antigas e imponentes. Ao entrar na linha de produção sente-se o cheiro a peixe e a temperatura alta, o sino antigo que marca a hora de entrada e de saída dos trabalhadores dá nas vistas, assim como a Nossa Senhora de Fátima plastificada numa prateleira pregada na parede.

6 fotos

O peixe chega todos os dias de manhã por uma porta especial, sai das caixas e é mergulhado num recipiente de alumínio em água fria e sal onde se dá a salmoura. “A sardinha grande fica 40 minutos, a média, 15, e a petinga, 5”, diz António Pinhal. Após este processo, sardinhas, cavalas e carapaus são estendidos em mesas grandes de mármore, onde com uma faca pequena lhes é retirada a cabeça e a tripa. “Este é um processo normalmente mecanizado, mas aqui fazemos à mão para garantir que a tripa sai toda.”

Sem cabeça e com espinha, o peixe é disposto um a um numa grelha de metal e mergulhado num tanque com água fria para se retirar o sal. As gralhas carregadas de peixe são distribuídas em carrinhos que entram numa estufa a 100 graus durante 10 a 12 minutos. De lá saem quentes e durante o processo de arrefecimento escorrem toda a humidade e gordura. “Assim, tanto a água como a gordura não vão para a lata e o azeite, quando é adicionado, fica amarelo e não castanho. Esta é uma das nossas grandes diferenças da concorrência”, explica António Pinhal.

Só depois desta fase é que o peixe é colocado em recipientes para depois ser cortado à mão com uma tesoura de forma a caber na lata de conserva, que depois pode levar molho de tomate, picles de pepino, cenoura ou malagueta. Nesta linha de montagem estão sentadas em fila várias funcionárias vestidas de branco, da touca às galochas, passando pelo avental impermeável. Muitas têm o nome escrito nas costas e almofadas para garantirem o conforto ao longo do dia.

Numa mesa ali perto, Emília Mata corta às rodelas pepinos sem luvas e à velocidade de uma autêntica máquina. Tem 64 anos, chegou à Pinhais com 28 e é uma das 100 funcionárias da casa. Antes passou pela conserveira Boa Nova, do outro lado da rua, e tal como as suas 8 irmãs, ganha a vida a trabalhar o peixe para conservas. Diz ter aprendido o oficio num mês e parece que já o faz de olhos fechados. Emília já passou por todos os processos da fábrica, mas não consegue escolher o seu posto preferido. Não se cansa da repetição e confessa que cantar o fado ajuda-a a passar o tempo entre as tarefas. É fã de conservas e revela que é com uma batata cozida que lhe sabem melhor.

17 fotos

Emília Vaz está na secção dedicada ao molho de tomate caseiro. Tem 67 anos e é a funcionária mais antiga da Pinhais. Começou aos 18 anos e no fim de 2020 vai reformar-se. Com o avental avermelhado e o suor a notar-se na testa, mostra orgulhosa as marcas no corpo que os anos de trabalho lhe deixaram. “Já me cortei nos dedos com as latas e já escaldei o pé a fazer o molho de tomate”, conta, acrescentando que a fábrica é a sua segunda casa e as colegas uma parte da sua família. Trata-as pelo primeiro nome e diz gostar de ensinar quem ali chega pela primeira vez. Entre todas, é conhecida como a “Emília da Afurada”. “Antigamente atravessava o Douro num pequeno barco, mas hoje em dia venho de autocarro até à Boavista e depois apanho o metro para cá chegar.”

Da Pinhais saem todos os dias cerca de 30 mil latas por dia, essencialmente recheadas com sardinhas. Por aqui não há desperdícios, prova disso é que a cabeça, o rabo e a tripa do peixe é enviado para a indústria da farinha para adubar a terra e o azeite que sobra é fornecido à indústria de sabonetes.

No tapete mecânico, as latas recheadas com peixe e outros ingredientes chegam a uma verdadeira chuva de azeite português para depois serem fechadas por outra máquina. Ainda gordurosa, a lata já fechada é lavada num tanque com água a 100 graus e esterilizada durante 60 minutos para eliminar qualquer bactéria e poder ser embalada à mão. Três meses é o tempo mínimo para ficar no armazém a ganhar sabor, só depois desse período de maturação é que a conserva está pronta a seguir viagem.

Dos 100 trabalhadores da Pinhais, 80 são mulheres

Célia Ferreira é a responsável pelo departamento das embalagens e nos 15 minutos de pausa para o lanche é a única na sala a embrulhar latas de conserva. “Posso comer em casa”, diz a sorrir, garantindo gostar do que faz. A sua mãe, tias e primas passaram pela Pinhais, por isso seria quase inevitável Célia também trabalhar na fábrica de Matosinhos, onde por dia lhe passam pelas mãos 1200 latas. A funcionária natural de Leça da Palmeira caminha rodeada de cartões e embalagens pinceladas de amarelo, verde, vermelho ou azul e sabe de cor o destino de cada uma delas. “Estas vão para a Austrália, aquelas para os Estados Unidos e aquelas para a República Checa.”

Depois da loja online, chegam os patês e um museu vivo

Em 2016, a família Pinhal vendeu a sua participação a um agente austríaco sendo ele o atual proprietário da marca. “Foi uma decisão motivada pela crise na pesca, não havia encomendas, tínhamos falta de liquidez e achamos que era necessário dar esse passo. É uma pessoa de confiança, trabalha connosco desde 1985, pertence a uma empresa familiar ligada aos cereais. Em tempos, foi o nosso melhor cliente, representava mais de 70% da nossa exportação, e tornou-se a única forma de salvar esta firma”, recorda António Pinhal. Apesar da mudança, tudo parece ter permanecido. “A única premissa foi mesmo deixar tudo como está.”

Atualmente, a Pinhais exporta 90% da sua produção para países como Áustria, Estados Unidos, Filipinas, Dinamarca ou França. Por cá, os pontos de venda resumem-se às lojas gourmet. “A quantidade não é qualidade. Nós apostamos na qualidade, enquanto que nas grandes superfícies compramos uma lata de sardinhas a 0,90 cêntimos, a nossa custa 2,50€. A mão de obra é muito cara, trabalhamos com 14 ou 15 etapas, as outras fábricas têm apenas três”, justifica António Pinhal.

A Nuri é uma marca da Pinhais que exporta sardinha, cavala e carapau para os quatro cantos do mundo

Alargar o leque de produtos não faz parte dos planos da marca, que por trabalhar em mesas de mármore originais de 1920 vê o seu espaço de trabalho limitado a peixes pequenos. No entanto, existe a necessidade de trazer algo novo para o mercado, por isso, no próximo ano, a Pinhais vai usar as sobras de sardinha para comercializar patês. A loja online foi lançada mesmo a tempo da pandemia e no verão de 2021 espera-se um museu vivo nas instalações da fábrica, um projeto que vive na gaveta há vários anos e que a burocracia atrasou. “Queremos dar a conhecer o que foi a tradição da indústria conserveira, mostrando, ao mesmo tempo, como trabalhamos.”

António Pinhal não teme o futuro e afirma que só mesmo a pandemia obrigou a pequenas alterações na empresa, como os acrílicos dispostos entre as trabalhadoras, um laboratório convertido numa sala de quarentena e mais processos de transporte mecanizados. O neto do fundador da Pinhais come conservas religiosamente todas as sextas-feiras ao almoço. “As latas de conservas têm normalmente seis anos como data de validade, mas o meu pai sempre preferiu as antigas com 15 ou 20 anos, achava que a conserva ficava muito mais maturada com o tempo. Todas as sextas-feiras ao almoço ele abria uma lata antiga, observava, cheirava e pedia-me para comer um pedaço. Passados cinco minutos, se não me sentisse mal, comia ele. Era a sua cobaia e eu achava piada a isso.”