António Costa Silva, o conselheiro do Governo para a visão estratégica do plano de recuperação, garantiu esta quarta-feira que o primeiro-ministro não o “condicionou em nada” na construção do documento. Porém, admitiu que fez “algumas propostas” que optou por não integrar no plano para a década. E porquê? “Para não suscitar mais controvérsia“. Quais? Não disse. Mas há temas que os deputados da comissão de economia, onde foi ouvido, queriam ter visto na visão estratégica — como uma política de rendimentos e contra a precariedade, uma visão para as regiões autónomas e outra para a indústria alimentar.

“Quando comecei a pensar na dimensão dos desafios que temos à frente, senti que devia incluir as condicionantes e limitações no fim. Isso foi um debate muito intenso e interessante. Fiz algumas propostas que no documento final resolvi não integrar para não suscitar mais controvérsia”, disse, em resposta a uma pergunta do deputado centrista João Gonçalves Pereira que questionou Costa Silva sobre que propostas ficarão para trás. E que falhas encontraram os deputados?

Salários e direitos laborais

A crítica veio da esquerda. Isabel Pires, deputada do Bloco de Esquerda, criticou o documento de Costa Silva por ser “demasiado genérico” e ter “omissões” importantes. “A primeira ausência óbvia tem a ver com trabalho”, argumentou. Segundo a deputada, Costa Silva aborda no plano o aumento de produtividade e a digitalização dos processos de produção, mas é omisso quanto a “salários e direitos laborais” e tem uma forma “ideológica” de olhar para a sociedade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Do gato de Schrödinger a Hannah Arendt. As alterações ao plano de Costa Silva em seis autores

“O aumento da produtividade está acima do aumento do salário há vários anos, o salário mínimo e médio ainda são dos mais baixos da Europeu”, disse Isabel Pires, acrescentando que uma estratégia de “salários baixos vai continuar a ser uma estratégia errada”. Na resposta, António Costa Silva repetiu que o plano não pretende dizer ao Governo como aplicar aos orientações. As medidas de rendimentos, considera, são “uma matéria da governação”, embora considere que o país não pode estar baseado numa política de baixos salários, mas sim “de inovação tecnológica”.

Combate à precariedade

Isabel Pires apontou ainda que no documento de Costa Silva não foram “tecidos comentários para a discussão sobre a precariedade“. “Nas páginas do documento não há qualquer referência a ela”, adiantou, questionando o gestor sobre como se pode sair de um modelo “assente em formas precárias de trabalho”. Também o deputado do PCP, Bruno Dias, perguntou por que razão o documento não menciona o combate à precariedade nem a introdução de medidas de distribuição da riqueza, que foram defendidos numa intervenção de Costa Silva.

Segundo Costa Silva, a precariedade trata-se de um “assunto vital”, mas está ligada a “políticas executivas”, que são da responsabilidade política, e que, por isso, teve “o cuidado” de não introduzir no plano. Sugere, antes, a qualificação e proteção do emprego e diz estar preocupado com “os setores que vão perder o emprego” e como poderão ser requalificados.

Como o plano Costa Silva relança as duas obras mais polémicas — o TGV e o aeroporto

Bruno Dias notou que há no documento uma “desvalorização da capacidade que a administração e o Estado têm na visão do planeamento estratégico”, depois de Costa Silva defender que a administração pública está muito focada para pareceres e pouco para a resolução de problemas.

O PCP “compreende” essas palavras, mas defende que a “capacidade [da administração pública] existe ainda, apesar das ruturas geracionais de passagem do conhecimento”. “Isso não é azar, não foi uma fatalidade, foi uma opção política.” Bruno Dias critica ainda que, no plano de Costa Silva, os trabalhadores sejam “objeto e não sujeito”. “Qualificar trabalhadores, permitir a mobilidade… os trabalhadores são um objeto, a quem se dirige uma política como se fossem uma matéria-prima.”

Regiões autónomas

O documento de Costa Silva não é totalmente omisso quanto aos Açores e à Madeira, mas as referências não são suficientes para Paulo Neves, eleito pelo PSD/Madeira. “O plano não é nacional, é continental”, criticou. “A grande maioria do que apresenta não se refere nem aos Açores nem à Madeira”, apontou. “A sugestão que se apresenta para a Madeira, de um pólo… Tem de reconhecer que é muito pouco”. E sugere que o primeiro-ministro oiça os governos regionais, tal como vai ouvir os partidos políticos e os parceiros sociais a propósito da visão estratégica para o plano de recuperação.

Além disso, o documento “fala pouco da captação e investimento estrangeiro para Portugal”. “Temos um centro internacional de negócios da Madeira, é um hub por excelência de captação do investimento estrangeiro. Tem uma credibilidade extraordinária”, mas “o seu plano não tem isso”. E “falar do turismo e não se inserir a Madeira é uma gaffe que é difícil de aceitar”.

Plano Costa Silva tem propostas para o “day after”, mas valores e calendário será o Governo a decidir

Costa Silva sublinhou que a região autónoma está integrada nas propostas, nomeadamente no que toca à transição digital, mas reconhece que poderia ter explorado mais a aplicação das orientações à Madeira. Defende também que é preciso “explorar a nossa relação com Espanha e o espaço europeu mas também com o mar — e aí a Madeira tem um papel”. O mesmo disse, pouco depois, para os Açores, que, considera, têm potencial para atrair centros de investigação e cientistas.

No plano, Costa Silva escreve que há uma “necessidade de lançarmos, em particular nos Açores e na Madeira, as bases de uma grande Universidade do Atlântico, em ligação com as outras Universidades portuguesas e Centros de Investigação, transformando os Açores e a Madeira numa plataforma tecnológica para o estudo do clima, do oceano, da terra e da meteorologia”.

Os Açores são uma das melhores localizações do mundo para este tipo de estudos e é fulcral ter um modelo integrado que contemple todas as vertentes: o oceano, o clima, a atmosfera, a previsão meteorológica, o mapeamento de recursos nacionais, a criação de clusters para o aproveitamento e desenvolvimento sustentável desses recursos.”

Solução para o aeroporto de Lisboa

A pergunta foi colocada por André Silva, do PAN: o que pensa Costa Silva sobre a solução da base do Montijo encontrada para o aeroporto de Lisboa. “Nunca se comprometeu com a solução“, apontou.

Na resposta, Costa Silva salientou que defende “um grande aeroporto” para a zona de Lisboa. “A performance da economia depende das ligações aéreas”. No entanto, optou “por não recomendar” uma solução específica por considerar que é uma questão política, que deve ser discutida na Assembleia da República. Sobre o tema, no documento, apenas refere que é necessário “construir o Aeroporto para a grande Área Metropolitana de Lisboa, tendo em conta que as ligações aéreas são fundamentais na performance da economia portuguesa, e isso tem a ver não só com o turismo, que é um setor crucial da economia, mas também com muitas outras fileiras económicas”.

Indústria alimentar e um modelo diferente ao “vigente”

Para André Silva, o plano é ainda omisso quanto à indústria alimentar e a “um dos maiores flagelos do país que é a produção de carne”. “É absolutamente impossível a produção de carne sem enormes impactos ambientais”, disse, sublinhando que “ainda não percebemos” qual a visão do gestor na matéria. Costa Silva reconheceu que não tratou “em profundidade” a questão da alimentação, mas garante que o tema o preocupa porque “provavelmente a nível planetário, poderemos ter de consumir mais peixe”, como resposta ao “problema do consumo excessivo de carne“.

André Silva salientou ainda que o partido está em sintonia com o investimento na ferrovia e nos transportes públicos ou com o fim das isenções de combustíveis fósseis. Mas há “uma visão de fundo que nos separa”. “A sua visão que está subjacente assenta num modelo económico tradicional”, de exploração de recursos limitados, e não numa economia eficiente, considera. Uma crítica semelhante foi endereçada por Isabel Pires, que partiu do eixo da transição energética para criticar que “as soluções encontradas” se baseiem “no mesmo modelo vigente de produção e de consumo”. “Isto aliado a uma lógica que está muito patente no documento de exploração do meio ambiente, de recursos naturais. Há um aumento da extração de minérios, incluindo no fundo dos oceanos“.

Sobre as centrais de biomassa, que Costa Silva apoia, Isabel Pires disse que “não foram ouvidas as preocupações das populações locais” nem foi tida em conta a não regeneração do solo que este tipo de atividade pode provocar”.