Nome: Cidade Infecta
Autor: Teresa Veiga
Editor: Tinta-da-China
Páginas: 176
Preço: 13,90€

Teresa Veiga, tantas vezes equiparada a Elena Ferrante pelo anonimato atrás do qual se esconde, é, contudo, ao contrário da super-estrela italiana, talvez o exemplo maior em Portugal de um conjunto de escritoras que vêm sendo sistematicamente aclamadas pela crítica e esquecidas pelo público em geral (juntando-se, nesse clube, a nomes tão recomendáveis como Cláudia Andrade ou Ana Teresa Pereira). Embora Cidade Infecta não seja certamente a obra-maior da autora, encontramos, neste seu regresso a um género literário que abandonara há mais de vinte anos, algumas das suas virtudes absolutamente intactas. A escrita de Teresa Veiga continua elegante, como vemos desde logo na primeira página em que, apenas pela forma como Anabela mete a chave à fechadura ao entrar e ao sair de casa, compreendemos de forma nítida o terror absoluto e envergonhado da protagonista, causado pelo misterioso homicídio de uma mulher recentemente decorrido em Oliveira, bem como pela brutalidade imprevisível do seu próprio marido. O crime e a violência doméstica parecem, assim, abanar a tranquilidade de personagens habituadas a contrapor a delinquência das cidades ao bucolismo do interior, a insegurança das ruas ao conforto das casas.

Cidade Infecta, embora sendo um romance a incidir sobre o que acontece dentro de portas, parece apontar simultaneamente para o fim da tranquilidade e das certezas de uma pequena cidade do interior, abaladas por ameaças cujos habitantes são incapazes de compreender. A um desconhecido homicida à solta rapidamente se junta um bando de jovens que se entretém a invadir casas e a roubar pequenas e insignificantes lembranças, deixando em troca marcas indeléveis da sua presença, apenas para que os habitantes se apercebam da sua própria vulnerabilidade e que, aterrorizados, agradeçam terem sido poupados a uma ameaça cuja origem desconhecem, enquanto metem trancas às portas.

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Em alguns momentos do romance, não conseguimos abandonar a impressão de que Teresa Veiga nos está a querer dizer alguma coisa acerca da pandemia que nos tem confinado. Desde o título à ideia de uma morte que invade a cidade sem que ninguém saiba de onde vem, vários elementos parecem apontar na direção desta pandemia que nos fez dar voltas às trancas das portas e suspeitar de ameaças obscuras ao virar da esquina. O caos gerado por um grupo de intrusos que invade os nossos lares, sem que se saiba como entrou ou de onde veio,  e que entra e sai, na enorme maioria das vezes, sem deixar marcas parece também de alguma maneira invocar, ainda que sub-repticiamente, uma realidade que se tornou para todos subitamente presente. No entanto, também esta eventual chave de leitura não parece ter consistência para nos aproximar de uma interpretação minimamente robusta do livro.

Em Cidade Infecta, a elegância da escrita de Teresa Veiga contrasta radicalmente com a brusquidão do enredo que teima em apontar em mil direções sem sair do lugar. Há um temível homicida à solta que não desempenha nenhum papel na narrativa, parecendo apenas um elemento esquecido, por vezes bruscamente recuperado, para uma narrativa que seria quase igual sem ele. As personagens são invariavelmente promissoras e interessantes, mas assim que acabam de ser esboçadas são abandonadas, ficando nítidos e claros os contornos dos seus rostos e monstruosamente vago o resto do corpo. Luís, o líder do bando que aterroriza a vizinhança, apenas para dar um exemplo, é um delinquente a quem é atribuído um irmão tragicamente morto e uma consciência altamente apurada que o vai colocando em sarilhos. No entanto, toda esta construção é remetida para um papel absolutamente secundário por um narrador que teima em ignorá-lo. Os habitantes desta Cidade Infecta, tal como Luís, veem-se então destinados a desfechos incompreensíveis e a casos amorosos surgidos do nada. Ao longo destas poucas páginas, personagens como Raquel deixam de ser pessoas de carne e osso, com um nome e um rosto, para se transformarem em meras representações da esposa abastada e ociosa que se entretém a dormir com jovens mancebos como infantil forma de vingança sobre o seu abusivo esposo. O desfecho do livro parece, aliás, sob esta perspetiva, o resultado de uma narrativa cuja autora, decidida a atravessar o Canal da Mancha a nado, se viu subitamente sem fôlego ainda com a praia à vista, o que deixa o leitor numa angústia semelhante à de Luís, a quem o jovem irmão, partido cedo demais, não dera “tempo para criar laços”.

Perto do fim do romance, Raquel vê-se guiada pelo marido, embriagado, por uma estrada de curvas e contracurvas pelo meio da serra. A sensação que temos ao ler Cidade Infecta é bastante semelhante a esta de nos vermos guiados numa marcha soluçante que ora para e nos permite contemplar, maravilhados, uma extraordinária paisagem, ora acelera a fundo, aos repelões, deixando-nos apenas com vontade de aproveitar uma qualquer travagem para tirarmos o cinto e nos esgueirarmos lá para fora. E é pena, porque a condutora, nos seus dias, é uma Fittipaldi.

joaopvala@gmail.com