Desde que Sherlock Holmes chegou ao cinema, no ano de 1900, num filme com pouco menos de um minuto intitulado “Sherlock Baffled”, que em paralelo com as adaptações canónicas dos casos da personagem de Sir Arthur Conan Doyle, existe um subgénero dedicado a representá-lo em “pastiches” e paródias, bem como o mundo em que se movimenta. (Isto para não falar da televisão, onde Holmes até já mudou de nacionalidade, raça e sexo, na série japonesa “Miss Sherlock”, de 2018, passada nos nossos dias e cuja heroína se chama Sherlock Futaba e tem como parceira a Dra. Wato-san).

Dele fazem parte filmes como “As Aventuras do Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes, de Gene Wilder (1975), sobre Sigerson Holmes, o irmão mais novo, desconhecido e desastrado do mestre detetive; “O Regresso de Sherlock Holmes”, de Herbert Ross (1976), em que Holmes (Nicol Williamson) vai a Viena consultar Sigmund Freud (Alan Arkin) por andar a abusar da cocaína e começar a ter fantasias; “O Enigma da Pirâmide”, de Barry Levinson (1985), com um Sherlock Holmes adolescente (Nicholas Rowe); ou “As Desventuras de Sherlock Holmes”, de Thom Eberhardt (1988), onde o Dr. Watson (Ben Kingsley) é o verdadeiro cérebro da dupla e Holmes (Michael Caine) um ator copofónico que finge ser o lendário detetive.

[Veja o “trailer” de Enola Holmes”:]

O mais recente acrescento a este subgénero é “Enola Holmes”, de Harry Bardbeer, exibido na Netflix. Millie Bobby Brown (“Stranger Things”) interpreta Enola, a irmã mais nova de Sherlock e Mycroft Holmes, personagem inventada pela escritora americana Nancy Springer na série para adolescentes “The Enola Holmes Mysteries”, de que já foram publicados seis livros, sendo este filme a adaptação do primeiro. Criada e educada em casa pela mãe (Helena Bonham-Carter), uma proto-feminista que inculcou na filha a ideia da necessidade das mulheres serem cultas, desempoeiradas e auto-suficientes, Enola acorda no dia do seu 16º aniversário e tem uma surpresa que não esperava: a mãe desapareceu, deixando-lhe um presente sob a forma de um enigma.

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[Veja Millie Bobby Brown, Henry Cavill e Sam Claflin falarem sobre o filme:]

Enola quer ir à procura dela, mas entretanto aparecem os irmãos Sherlock (Henry Cavill) e Mycroft (Sam Claflin), que não a veem desde que saíram de casa era ela miúda, e a querem meter num colégio interno, para que deixe de ser uma maria-rapaz e se transforme numa rapariga como mandam as regras da sociedade bem-comportada. É claro que Enola, fiel à educação que a mãe lhe deu, manda os irmãos passear e foge para Londres, encontrando no comboio o marquês de Tewksbury, um jovem aristocrata que também não quer nada com a família e que acaba por salvar de ser assassinado. O que deixa a jovem com dois mistérios para resolver: o da mãe desaparecida e o do rapaz que alguém quer matar, ninguém sabe porquê.

[Veja uma cena do filme:]

Realizado de forma indiferente por Harry Bradbeer, recém-chegado ao cinema depois de uma longa carreira na televisão, “Enola Holmes” é, infelizmente, um decalque em versão “teen” dos detestáveis filmes de Sherlock Holmes rodados por Guy Richie e interpretadas por Robert Downey Jr. e Jude Law, que deturpam profundamente a personagem de Conan Doyle na letra e no espírito. Enola é muito mais uma heroína de ação do que uma personagem “cerebral” que recorre primordialmente à razão e à dedução. Ela é ginasticada como uma atleta olímpica, sabe judo, usa bem os punhos e até guia um carro numa altura em quase não existiam, e certamente não em Inglaterra. Em “Enola Holmes”, a espectacularidade subalterniza o trabalho detetivesco.

[Veja uma cena do filme:]

O desaparecimento da mãe de Enola (que, qual, Guy Fawkes de saias, tem um plano secreto para rebentar com a Câmara dos Lordes por causa de uma votação muito importante que vai lá ter lugar) acaba por não ter mistério nenhum, enquanto que a resolução do caso do jovem aristocrata em perigo de morte é de um absurdo ululante (por trás de tudo estão, é claro, perversas forças “conservadoras” que querem manter a horrível “tradição” custe o que custar e impedir o “progresso social”). E o argumentista deve ter achado que pôr Enola a dirigir-se diretamente aos espectadores a todo o pé de passada tinha muita graça, mas o artifício depressa se torna irritante.

Millie Bobby Brown entrega-se à personagem com alegria e afoiteza (as duas estrelas da classificação são só para ela), mas isso não impede “Enola Holmes” de ser uma daquelas abordagens ao universo de Sherlock Holmes que toma muitas liberdades disparatadas, além de fazer alusões politicamente corretas chapadamente anacrónicas. Ver por exemplo o “dojo” clandestino, só para mulheres e etnicamente modelar, situado no sótão de um salão de chá londrino, onde Enola e a mãe tiveram lições de judo, ou então a metamorfose genética do inspetor Lestrade. É o suficiente para pôr Sir Arthur Conan Doyle a dar mortais encarpados na tumba.

“Enola Holmes” está disponível na Netflix