Beijo, batom, dialeto, rede ferroviária, forças armadas, bailado. Não são palavras que estejamos habituados a ouvir aos cientistas quando explicam os seus projetos. Mas, sentado na poltrona azul do seu gabinete com vista para o Tejo, na Fundação Champalimaud, em Lisboa, Henrique Veiga-Fernandes usa-as a todas. Com entusiasmo, cria alegorias, estabelece comparações e imagina metáforas que ajudem a compreender melhor os conceitos e mecanismos complexos que existem num mundo que não se vê a olho nu.

Impulsionador e um dos pioneiros mundiais da neuroimunologia – que estuda a relação entre sistema nervoso e sistema imunitário – o cientista recorda que foi há cerca de 15 anos, durante o seu pós-doutoramento no National Institute for Medical Research, em Londres, que lhe surgiu a primeira pista para esta nova abordagem na investigação. Foi assaltado pela seguinte perplexidade acerca do que estava a observar: “Porque é que uma célula do sistema imunitário tem uma proteína que habitualmente vemos expressa nos neurónios?” E, como atrás de uma dúvida vem sempre uma hipótese, pensou que talvez pudesse haver uma conversa secreta entre os dois sistemas, até então ainda desconhecida. Arriscou seguir esse caminho.

Um bom cientista é aquele que sabe ver uma coisa que sempre esteve lá, que é visível para todos, mas, num certo momento, só nós é que identificamos. Depois é ter a coragem de avançar. Frequentemente, esse é um caminho de uma enorme solidão – não física, porque é um trabalho de equipa – mas intelectual.”

O investigador garante que se recorda bem de uma conferência em Paris, em 2009, quando apresentou os primeiros resultados nesta área. “A audiência ficou a olhar-nos como se fossemos extraterrestres.”

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Apesar da desconfiança, o caminho estava certo. Em 2014 confirmou que havia moléculas que atuam no sistema nervoso que também atuam no sistema imunitário; em 2016, demonstrou que há uma interação funcional entre células do sistema nervoso e alguns linfócitos do intestino; em 2017, comprovou que este tipo de interações ocorre também com linfócitos do pulmão. E, em 2019, constatou pela primeira vez que temos zonas do nosso cérebro que estão num diálogo permanente com células imunitárias do intestino.

Para perceber como isto é revolucionário, temos de recordar o que aprendemos na escola. “Ensinaram-nos que o sistema imunitário existe para nos defender contra as infeções. Uma espécie de forças armadas que nos defendem dos vírus e bactérias. O que temos descoberto é que esta visão, não estando errada, está incompleta: o sistema imunitário é muito importante para assegurar as funções de outros órgãos e para nos manter num estado de saúde, independentemente das infeções.” E faz isso porque é capaz de dialogar de forma muito dinâmica com outros tipos de células. “Sabemos, por exemplo, que tem grande controlo dos mecanismos metabólicos do fígado, dos rins, do tecido adiposo e mesmo da forma como o nosso pulmão segrega muco.”

Quando um linfócito interage com um neurónio transmite-lhe informação genética que o faz mudar de cor

Além disso, sabe-se que, mesmo na luta contra infeções, o nosso sistema imunitário não está sozinho. Ele atua em conjunto com o sistema nervoso. Atualmente, com o seu projeto “Unravelling Pulmonary Neuroimmune Circuits During Infection (Neurimm KISS)”, financiado ao abrigo da edição 2020 do programa Health Research, da Fundação ‘La Caixa’, o cientista está a estudar precisamente os mecanismos que permitem aos neurónios e às células imunitárias dialogarem entre si para maximizar uma resposta eficiente contra as infeções pulmonares.

A relevância desta possibilidade está hoje mais em evidência do que nunca, com a pandemia de Covid-19. Tal como acontece com a maioria das infeções pulmonares causadas por vírus, não existem antivirais eficazes para a tratar. Por outro lado, no que toca às infeções bacterianas, apesar de haver um leque variado de antibióticos, há super-bactérias que lhes desenvolveram resistência. “Compreendermos este diálogo com os neurónios é crítico para termos novas armas no combate a estas doenças”, resume o cientista. “Se percebermos, qual é o ‘comando vocal’ neuronal que induz uma rápida ativação das células imunitárias para eliminar a infeção, podemos sintetizar esse comando em laboratório e usá-lo como medicamento.”

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Para descodificar esses “comandos” ou “dialetos” que as células usam, a equipa de 15 pessoas que trabalham com Veiga-Fernandes desenvolveu uma tecnologia inovadora: chamam-lhe a técnica do beijo. Com ela conseguem identificar os neurónios que tiveram uma interação íntima com um linfócito. “Quando um linfócito ‘beija’ um neurónio transmite-lhe informação genética que o faz mudar de cor.” Por outro lado, desenvolveram também a técnica do batom, que permite ver diferenças de cor nos linfócitos ‘beijados’ por neurónios. “Os neurónios estão sempre no mesmo sítio, são como uma rede ferroviária, mas os linfócitos circulam. Acontece que, depois de levarem ‘um beijo com batom’, ficam com essa marca para onde quer que vão. Se encontramos um neurónio com uma ‘marca de batom’ no intestino, por exemplo, sabemos que dois dias antes estava no pulmão a interagir com um determinado circuito neuronal. Assim, conseguimos criar um atlas destes movimentos, ver toda a coreografia do bailado que fazem”, explica o investigador.

É difícil imaginar que o cientista que foi impulsionador deste novo campo de estudo queria em criança ser padeiro ou bombeiro. “Não pelo interesse que tinha nessas profissões, mas apenas porque não queria ir para a escola aprender a ler e a escrever”, explica, divertido. Ultrapassada essa resistência inicial, fez um percurso escolar “normal” e escolheu estudar Medicina Veterinária, pela grande proximidade que tinha com o mundo rural e com a natureza em Viseu, onde cresceu. Foi durante o ano de Programa Erasmus, em Milão, que teve contacto com a investigação pela primeira vez. E foi isso que acabou por transformá-lo no adulto que decidiu, afinal, nunca mais parar de estudar e viver lado a lado com a dúvida.

Cada vez que concebemos uma experiência, estamos a perguntar a nós próprios: ‘Estás certo ou estás errado?’ E, muito frequentemente, o que a experiência nos diz é ‘Estás errado’. Por isso, há uma característica que os cientistas têm de ter: ser capazes de lidar com a incerteza permanente. Esta incerteza e o problema científico seguem-nos sempre, para onde quer que se vá.”

Quando olha para trás, não pode deixar de sentir orgulho no caminho. “É extraordinário ver as repercussões na comunidade científica internacional e ter tido a sorte e o privilégio de estar na génese desta área de investigação.” Já ao olhar para a frente, contemplando os desejos, expectativas e aspirações para as próximas décadas, pede – aparentemente – pouco. “Gostava de ter daqui a dez anos o mesmo entusiasmo de hoje. Tudo o resto – as grandes publicações, o reconhecimento internacional, os prémios – é um acréscimo. É, na verdade, uma consequência do entusiasmo. Sem ele não há trabalho de qualidade.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Unravelling Pulmonary Neuroimmune Circuits During Infection/ O Diálogo entre Neurónios e Defesas Abre a Porta para Novas Terapias Contra Infeções, liderado por Henrique Veiga-Fernandes, da Fundação Champalimaud, foi um do 25 selecionados (6 em Portugal) – entre 602 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do Concurso Health Research. O investigador recebeu 500 mil euros por três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 abrem a 20 de outubro e encerram a 3 de dezembro.