Há seis meses, quando o país estava em estado de emergência, em boa parte confinado e remetido a casa, era complicado imaginar o cenário que se viverá no bairro de Alfama, em Lisboa, esta sexta-feira e este sábado, dias 2 e 3 de outubro: o regresso de um festival com concertos em vários palcos.

Contrariando a lógica de muitos outros festivais de música, que decidiram adiar as suas edições por ser incomportável sustentá-las com lotação mais reduzida (menos bilhetes vendidos) e com uma programação mais orientada para artistas nacionais, o Santa Casa Alfama vai mesmo acontecer em 2020.

Não será, claro, uma edição normal, porque a Covid-19 continua a ser um problema — ainda mais agora que é nítido o aumento de contágios, já visto por muitos especialistas como uma segunda vaga. A própria organização admite que a lotação de todas as salas de espectáculo foi “adaptada às orientações da Direção Geral da Saúde” para que o Santa Casa Alfama pudesse realizar-se este ano, sendo ainda de notar que a programação de alguns “palcos” fechados no coração do bairro de Alfama foi transferida para palcos ao ar livre, montados junto ao rio, para evitar “ajuntamentos nas ruas interiores do bairro”.

Outras medidas de contenção passaram pela exigência de “uso de máscara em todo o festival”, disponibilização de “álcool-gel em todos os espaços e locais de atendimento”, colocação de “lugares sentados” e distanciados entre si em “todas as salas”, separação entre zonas de entrada e saída e percursos de circulação “devidamente assinalados”, “acompanhamento dos espectadores”, instalação de uma “sala de isolamento” caso “seja necessária” — e com a “presença de uma equipa de assistência médica permanente” por via das dúvidas —, uso de EPI por toda a equipa de funcionários do festival e “desinfeção de todos os recintos e salas, bem como equipamento de uso partilhado”.

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Mesmo com muitos ingredientes novos, resultantes do contexto sanitário e da pandemia que mudou o mundo, o festival continuará a ter alguns dos ingredientes antigos que o tornaram um importante evento cultural de outono: nomeadamente dois de peso, o fado e o bairro de Alfama, historicamente zona fadista por excelência. Em antecipação ao início do Santa Casa, deixamos-lhe seis sugestões de concertos a não perder:

Fábia Rebordão

6.ª, 20h15, palco Ermelinda Freitas

Vai atuar por volta da hora do jantar, logo no primeiro dia de festival — sexta-feira, 2 de outubro — e se fosse futebolista, dir-se-ia estar a “jogar em casa”. Nascida em Lisboa com sangue fadista, dado que é ainda prima de Amália Rodrigues, Fábia Rebordão assinalou o 35º aniversário com o país em confinamento e já canta há muitos anos. Ainda adolescente, foi-se afirmando nas casas de fados deste mesmo bairro de Alfama, como a Taverna do Embuçado e o Clube do Fado. O gosto pela música, porém, não se cingia ao fado, pelo que ainda participou no programa de talentos Operação Triunfo (do qual foi finalista).

O primeiro álbum de estúdio, editou-o em 2011, tinha então 26 anos. O sucesso foi notório, com um concerto dado no mesmo ano na mítica sala de espectáculos novaiorquina Carnegie Hall e com convidados no disco como a cantora Lura e a fadista e irmã de Amália, Celeste Rodrigues. Cinco anos depois, em 2016, lançou o seu segundo álbum, intitulado Eu — para o qual convidou autores e escritores de canções como Rui Veloso, Tozé Brito e Pedro da Silva Martins. Já este ano, o mesmo em que se assinalam e celebram os 100 anos de nascimento de Amália, gravou uma versão de “Estranha Forma de Vida”. Se o sentimento é fadista, a música até aqui era tudo menos tradicional. Mas Fábia Rebordão não lança um álbum há quatro anos, ganhou notoriedade com a atenção que lhe prestou Madonna e não sabemos bem que música faz hoje, até porque já assumiu que a luta que a fez perder 50 quilos, mais coisa menos coisa, alterou-lhe voz. Por tudo isto, é melhor estarmos atentos.

Fábia Rebordão – Estranha forma de vida

No dia do meu aniversário partilho esta “Estranha forma de Vida”, que dedico a todos que com o seu trabalho nos permitem estar serenos em nossas casas.#Fado #FiqueEmCasa #Portugal #Amalia

Posted by Fábia Rebordão on Sunday, March 29, 2020

Mariza

6.ª, 23h45, palco Santa Casa

Dispensa apresentações até porque o seu lugar na história do fado e da música portuguesa está mais do que assegurado, goste-se mais ou menos do caminho musical que trilhou nos últimos anos. Mariza está bem no cimo da lista de músicos e cantores portugueses mais populares fora do país — como bem atesta o sucesso das suas digressões mundiais —, pelo que os regressos a Portugal serão sempre alvo de curiosidade. Acresce que há mais dois fatores que tornam este concerto obrigatório: vai ser a estreia de Mariza no principal festival de fado do país e a atuação antecede a edição de um novo disco intitulado Mariza Canta Amália, que chegará às lojas e plataformas de streaming no dia 20 de novembro. Não será por isso nada surpreendente se neste ano em que se assinalam os 100 anos de nascimento de Amália Rodrigues, Mariza desvendar em primeira mão algumas das suas interpretações de fados emblemáticos já esta sexta-feira.

Júlio Resende, “Carta Para Amália”

Sáb., 19h, palco Santa Casa

Em ano de celebração do centenário de nascimento de Amália Rodrigues — que marca aliás toda a programação, com concertos comemorativos mas também com escolhas de fadistas e músicos com forte ligação ao legado de Amália —, o Santa Casa Alfama convidou o pianista Júlio Resende para escrever uma carta à fadista mais emblemática de sempre. A carta será escrita com música, de dedos no piano, e com uma boa dose de improviso, até porque é esse o motor de criação de um instrumentista e compositor que já acompanhou Salvador Sobral e que, a solo, tem entre os seus vários discos lançados um álbum chamado Amália Por Júlio Resende. Nele, recria a música de Amália e Oulman, apropriando-se das pistas que lhe deixaram mas transformando a matéria prima que se conhece com cunho pessoal. Mas faz mais: chega a ensaiar um diálogo e um dueto imaginário com a fadista, tocando ao piano enquanto se ouvem gravações de Amália a cantar. Por tudo isto e pela beleza musical a que Júlio Resende nos habituou, é mais um concerto imperdível do festival.

Helder Moutinho

Sáb., 20h45, palco Ermelinda Freitas

Com um percurso antigo no fado, que como fadista não começou sequer no decurso dos primeiros 20 anos deste século mas sim ainda nos anos 1990, Hélder Moutinho é um dos artistas mais sonantes que irão atuar noutros palcos do festival que não o “principal”. Neste caso, o concerto decorrerá no palco Ermelinda Freitas, instalado no rooftop do Terminal de Cruzeiros de Lisboa.

Tendo conciliado o lado de fadista com o lado de escritor de fados — presente desde muito cedo, antes até de se ter revelado publicamente como fadista com obra própria —, Hélder Moutinho tem cinco álbuns completos de estúdio editados. O mais recente, com poemas de João Monge e composições musicais de Mário Laginha, Vitorino, Pedro da Silva Martins e Ricardo Parreira, entre outros,  chama-se O Manual do Coração e remonta já a 2016. Vem aí um sucessor: ainda este ano será editado mais um álbum, do qual já se conhecem temas como  “Atrás dos meus cortinados” e “Nunca Parto Inteiramente”. O concerto poderá assim ter canções antigas e temas inéditos, apresentados em primeira mão em concerto.

Concerto “Celebrar Amália 100 anos depois”

Sáb., 22h, palco Santa Casa

É apresentado pela organização como “um grande concerto exclusivo de homenagem àquela que foi a maior artista portuguesa de todos os tempos”. Tentando projetar um espectáculo eclético, “onde caibam intérpretes de vários géneros musicais, desafios a interpretar Amália e os seus fados” — porque Amália “esteve sempre à frente do seu tempo” sem “rótulos, convenções” ou “qualquer censura estética” —, os organizadores entregaram a direção do espetáculo a Jorge Fernando, fadista, músico e produtor musical que chegou a tocar com Amália.

Por este concerto, pensado exclusivamente para o festival, “vão passar os temas mais icónicos de Amália” — isto é, ouvir-se-ão os fados mais conhecidos que Amália eternizou — interpretados por vozes do fado como Katia Guerreiro, Sara Correia, Marco Rodrigues e o próprio Jorge Fernando mas também Rui Veloso, Diogo Piçarra e André Amaro. A apoiar os vários intérpretes vocais estará “uma formação de oito elementos”.

Gisela João

3/10, 23h45-1h15, palco Santa Casa

Os últimos 20 anos têm sido pródigos no surgimento de grandes e populares vozes femininas no fado: de Mariza a Ana Moura, de Carminho a Katia Guerreiro, de Cuca Roseta a Raquel Tavares e, bem mais recentemente, Sara Correia. Não terão sido muitos, porém, os que mal se apresentaram publicamente com um disco tiveram um impacto na música portuguesa semelhante ao que teve Gisela João.

A fadista e cantora de 36 anos, nascida em Barcelos, tem apenas dois álbuns editados — um disco homónimo de 2013 e Nua, editado em 2016 —, mas bastou o primeiro para se tornar nome bem conhecido não apenas de todos os amantes do fado mas de todos os ouvintes de música minimamente atentos. Aliando um portentoso alcance vocal a uma expressividade na interpretação que é notória em disco mas é ainda mais pungente ao vivo, Gisela João não é purista nem pouca aberta a outras sonoridades mas conhece bem a força que tem um fado sem grandes artifícios, só com solenidade e um canto sentido. O próximo disco, que está a ser preparado, promete desafiar a imagem pública da fadista e levar a sua música para estéticas novas, mas no domínio convencional do fado puro e duro Gisela João já provou ser capaz de arrebatar — e voltará a prová-lo certamente na ponta final da segunda noite de concertos do Santa Casa Alfama.