Os músicos de jazz norte-americanos historicamente sempre acompanharam e modificaram os estilos em virtude das circunstâncias políticas mas atualmente a tradição contestatária deixou de ser a “nota principal” considera o músico e professor, Ricardo Futre Pinheiro.

“No universo do jazz, que é o meu, vejo nas redes sociais os músicos norte-americanos envolvidos politicamente no ‘Black Life Matters’ ou contra Donald Trump, no contexto das eleições presidenciais, mas depois noto que na música falta a mensagem”, disse à Lusa Ricardo Nuno Futre Pinheiro, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O professor e guitarrista de jazz é autor, entre outros, do artigo académico “Playing out loud: Jazz music and social protest” sobre a relação entre o jazz e política nos Estados Unidos ao longo das últimas décadas assim como acompanha os fenómenos atuais que influenciam a criatividade.

“Ainda há músicas que posicionam os músicos politicamente, sobretudo o rap, o hip-hop, e outras músicas urbanas e que estão ligadas a aspetos raciais e políticos mas mantêm-se numa esfera mais obscura”, diz considerando que os aspetos comerciais têm sido decisivos.

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“Boa parte da música hoje em dia tem um forte propósito comercial e há temas que são demasiado sérios para serem trazidos para a esfera comercial da música. Se calhar é mais fácil vender um disco com mensagens simples de amor do que questões mais profundas de caráter político e social. É uma pena a falta de envolvimento da música nestas questões”, lamenta Ricardo Pinheiro salvaguardando que há exemplos no jazz e na música instrumental que mantém a crítica e a intervenção.

São os casos de “Finding Gabriel” de Brad Mehldou ou o tema “Bump The Man” de Philipe Lassatier, entre alguns outros.

Mesmo assim, Ricardo Pinheiro nota que “cada vez mais há menos melodias e menos harmonias” e frisa que as novas tecnologias não têm necessariamente de esvaziar a composição e a criação musical que atualmente são marcadas por conteúdos superficiais.

“Quem quer vender música e quem quer comprar não quer pensar muito em políticas porque isso e doloroso, é complexo, e exige procura sobre o entendimento histórico dos factos”, refere, sublinhando que é interessante verificar como a música ao longo da História dos Estados Unidos acompanhou a vivência e os acontecimentos sociais, políticos e raciais.

Na investigação “Playing out loud: Jazz music and social protest”, Ricardo Pinheiro destaca o trabalho do compositor e contrabaixista de jazz Charles Mingus (1922-1979) no álbum “Ah Um”, de 1959, que integra o tema “Faubous Fables” que apesar de na gravação original não incluir a letra se tornou num ícone da intervenção política através da música.

“A editora que lançou a primeira versão da música não permitiu a letra (declaradamente contra os supremacistas brancos do Ku Klux Klan). Ouvem-se alguns gritos mas só mais tarde Mingus gravou a música com a letra que é muito direta. Era o que as circunstâncias na altura exigiam. Em particular, a música ‘Faubous Fables’ é sobre o governador do Arkansas (Orval Faubous) que proibiu o ingresso de crianças negras numa escola de crianças brancas”, em 1954, recusando-se a cumprir a ordem do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, explica Ricardo Pinheiro.

O académico destaca que o clima de violência que se gera nos Estados Unidos a partir do final dos anos 1950 é acompanhado pela música começando a desenvolver-se o free jazz e o avant-garde e todas as formas de jazz não só mais abstratas mas também, musicalmente, mais dissonantes.

“A música genial de Charles Mingus (‘Fabous Fables’) continua atual e a mensagem infelizmente adapta-se às circunstâncias atuais. Nos Estados Unidos ainda existe muita segregação. Se calhar o racismo já não se manifesta de uma forma tão aberta e não é só relativamente aos afro-americanos mas também em relação a outras minorias, como os latinos”, afirma.

Por outro lado, o académico refere que é importante também continuar a estudar a forma como o jazz foi utilizado como propaganda pelos vários governos dos Estados Unidos em meados do século XX para mostrar no estrangeiro altos níveis de criatividade enquanto “por contradição”, dentro do país, o jazz era usado pelos músicos como forma de crítica dessa mesma sociedade.

“Portanto, é interessante ver como uma música foi utilizada historicamente com propósitos contraditórios e como os discursos diferentes sobre a música podem dizer uma coisa e o seu contrário”, conclui.