Estando o sistema político dos EUA refém do bipartidarismo desde os primórdios da nação e sendo o seu sistema eleitoral enviesado e obsoleto, as eleições presidenciais resumem-se sempre à disputa entre o candidato democrata e o candidato republicano, que, em termos ideológicos nem sempre são fáceis de destrinçar para quem olha da Europa (ainda que a distinção se tenha tornado mais nítida nos últimos anos em resultado da inquietante polarização da política americana).

Tal não impede que regularmente surjam candidatos exteriores à monótona opção azul/vermelho, alguns deles sem vínculos ao mundo da política e que têm a seu favor apenas a notoriedade junto das massas. Em 2020, o outsider é o rapper milionário Kanye West, cujo narcisismo e cuja exaltada opinião sobre si mesmo só têm par em Donald Trump – que, curiosamente, West começou por apoiar, antes de ter descido sobre si a óbvia ideia de que ele mesmo daria um muito melhor Presidente dos EUA.

Não foi a primeira vez que um músico famoso concorreu a presidente: em 1964, com o país ainda a recuperar da comoção do assassinato de John F. Kennedy e a luta pelos direitos cívicos ao rubro, o trompetista Dizzy Gillespie (1917-1993) propôs-se para o cargo, ainda que não figurasse nos boletins de voto – Gillespie propunha que os eleitores escrevessem o seu nome no boletim que dava a escolher entre Lyndon B. Johnson (Democrata) e Barry Goldwater (Republicano).

O crachá da campanha eleitoral de Dizzy Gillespie tinha sido criado como irónico artefacto promocional no final dos anos 50 e foi reaproveitado em 1964

O programa eleitoral de Gillespie era obviamente jocoso, advogando o rebaptismo da White House como Blues House e desenhando um elenco governativo que incluía Duke Ellington como Secretário de Estado, Miles Davis como director da CIA, Max Roach como Secretário da Defesa, Charles Mingus como Secretário da Paz, Ray Charles como director da Biblioteca do Congresso, Louis Armstrong como Secretário da Agricultura, Thelonious Monk como embaixador itinerante, Peggy Lee com a pasta do Trabalho e Malcolm X como Attorney General (equivalente aproximado a Ministro da Justiça). Prometia ainda retirar a cidadania americana a George Wallace, governador do Alabama e acérrimo defensor do segregacionismo, e deportá-lo para o Vietnam, e colocar na Lua um astronauta negro (o próprio Gillespie, no caso de não surgirem voluntários). Porém, pilhérias à parte, Gillespie tinha o propósito de, num período crucial da história dos EUA, chamar a atenção para os problemas raciais que afligiam o país – e que, 55 anos depois, estão longe de se encontrar resolvidos.

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Em 1964, a criatividade musical de Gillespie já iniciara um lento e inexorável declínio, após os seus cruciais contributos para o nascimento do bebop e do jazz afro-cubano e discos como o incandescente For musicians only (1956), como Stan Getz e Sonny Stitt, mas continuava a ser um formidável executante de trompete e prosseguiu durante mais um quarto de século a gravar e actuar regularmente (na década de 80, à frente da United Nations Orchestra), só se retirando no final de 1991, com 74 anos de vida e 56 de carreira, devido a problemas de saúde.

Dave Douglas, “Dizzy atmosphere” (Greenleaf/Distrijazz)

A 2 de Setembro de 2019, 26 anos após o falecimento de John Birks Gillespie (era este o seu verdadeiro nome), o trompetista americano Dave Douglas entrou em estúdio com um sexteto formado por Dave Adewumi (trompete), Matt Stevens (guitarra), Fabian Almazan (piano), Carmen Rothwell (baixo) e Joey Baron (bateria) para gravar o álbum de homenagem Dizzy atmosphere: Dizzy Gillespie at zero gravity, agora editado. O disco combina duas composições de Gillespie, “Manteca”, um clássico do Latin jazz, e “Pickin’ the cabbage”, e sete composições de Douglas que tentam combinar os universos dos dois trompetistas – “Con Almazan” menciona o pianista cubano que integra o sexteto de Douglas, ao mesmo tempo que remete para “Con alma”, uma das mais emblemáticas composições de Gillespie; “Cadillac” alude a outra conhecida composição de Gillespie, “Swing low, sweet Cadillac”.

[“Manteca”:]

A escolha de Gillespie pode parecer inesperada, por o registo geralmente contido e subtil de Douglas estar distante da toada exuberante, acrobática e, por vezes, exibicionista, estridente e chocarreira de Gillespie. Porém, há que considerar que, embora Douglas tenha orientado boa parte da sua carreira para o desbravamento de novos caminhos (nomeadamente na intersecção do jazz com a electrónica), também é um profundo conhecedor dos grandes músicos de jazz do passado, a quem tem prestado homenagem regularmente: o (hoje olvidado) trompetista Booker Little em In our lifetime (1995), o saxofonista Wayne Shorter em Stargazer (1997) e no projecto Sound Prints (co-liderado pelo saxofonista Joe Lovano), a pianista Mary Lou Williams, em Soul on Soul (2000) e, já este ano, o trompetista Kenny Wheeler, através da faixa “Seven minutes for Kenny”. E Douglas, um dos jazzmen mais “politicamente empenhados” do nosso tempo, certamente também se identifica nesse plano com Gillespie, que não tendo sido das vozes mais ruidosas do activismo no jazz, nunca deixou de expressar as suas posições políticas, como atesta a sua candidatura presidencial de 1964.

[“Pickin’ the cabbage”:]

A revisitação de Douglas a Gillespie não envereda pelo decalque nem pelo revivalismo e oferece antes uma assimilação para a linguagem de Douglas de alguns elementos da música e estilo de Gillespie: “Manteca”, a única faixa impelida por ritmos afro-cubanos, é ondulante e caloroso, mas sem atingir a ebulição; “Pickin’ the cabbage” assenta num bebop vivo e zombeteiro, mas com arestas limadas e excitação controlada. O hipnotizante “Cadillac” (enredado nas malhas repetitivas da guitarra de Stevens) e a meditação entre brumas de “See me now” são outros focos de interesse neste disco que oferece um original olhar sobre Dizzy Gillespie.

[“Cadillac”:]