O primeiro comando é: “Vamos gravar”. Os membros do painel — quatro mulheres e um homem — trocam galhardetes acerca das brilhantes comunicações nos diversos colóquios e conferências que deram um pouco por tudo o mundo, no Massachusetts, em Edimburgo, no Cairo. O discurso é sempre no feminino, como que ignorando a presença do elemento masculino entre as teóricas, filósofas ou pensadoras. Este debate televisivo ocorre, pois, num mundo onde o patriarcado foi substituído pelo matriarcado, onde o homem é subjugado de todas as formas. Curioso, não é? O Eterno Debate é uma criação de Teresa Coutinho, criada para a RTP e transmitida no fim de 2018 e que agora conhece a sua versão cénica que se estreia esta sexta-feira no CAL — Primeiros Sintomas, em Lisboa, onde fica até 25 de outubro.

“Isto foi um convite da RTP para fazer uma peça para televisão e quis aproveitar essa possibilidade para brincar com a natureza do projeto, fazer uma peça de teatro que pudesse ser confundida com um programa. E na altura correu muito bem, mas ficou sempre a vontade de repetir e de perceber o que é que isto podia ser em sala”, explica a autora e encenadora. Depois disso, reescreveu o texto em algumas zonas para aumentar as suas potencialidades, sobretudo na integração do público que, desta feita, assume a habitual plateia dos debates assistidos.

O que depressa conseguimos testemunhar é que o homem em questão no painel nunca tem acesso à palavra, é excluído, depois integrado para lhe ser elogiada a cor dos olhos, o olhar de matador, a forma sedutora como veio vestido e todo esse comportamento típico. O sexismo sempre foi uma barreira, diz-nos Teresa Coutinho: “Este espectáculo surge da vontade de falar sobre os lugares comuns do sexismo e da desigualdade de oportunidades, de todas essas discrepâncias que existem, que são históricas e que estão na ordem do dia. Mas achei que só podia falar sobre isso se o fizesse através do humor, porque através do humor conseguimos que as pessoas se riam de si próprias sem se darem conta. Quero acreditar que quem se identificar com alguns dos comportamentos que ali estão consegue depois levar essa reflexão para casa, tendo ao mesmo tempo conseguido rir”, contextualiza.

“O Eterno Debate” é um espectáculo escrito e encenado por Teresa Coutinho

É, efetivamente, algo meio absurdo, que esta configuração provoque tantas vezes o riso desregrado. Nem que seja pelo quão caricato é ouvir barbaridades como as que são ditas pelo género que normalmente as ouve, coisa que sempre traz desconforto e possivelmente raiva embebida em sentimento de injustiça. Um pino, uma tigela de pernas para o ar, uma visão virada do avesso pode ser profundamente cómica, ainda que isso denote uma ordem estabelecida que está totalmente errada. Resta saber como será estabelecida a relação entre o público e o palco:

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“O texto foi escrito para tentar ir buscar as coisas que constantemente se ouvem quando se fala de sexismo e as minorias e a forma como estas são tratadas, muitas vezes o discurso que surge é ‘pronto, está bem, já percebemos, já se falou sobre isso, lá estão estes outra vez a bater na mesma tecla’. O que acho que o espectáculo tem é que na inversão, todas estas coisas que ouvimos na desigualdade de género têm uma força maior, na boca de mulheres é tão absurdo, percebemos tanto que nunca ouvimos estas coisas serem ditas por mulheres, que acaba por surtir o efeito, se não fosse necessário dizê-lo esta inversão não tinha força nenhuma”, admite Teresa Coutinho.

Então e de que se fala no debate? Pois, não sabemos, sabemos que o nome que lhe é dado é “o assunto”, ainda que o mesmo nunca seja evidente. E há até uma brincadeira com um mecanismo teatral explorado ao longo dos anos, o falso início ou o falso fim, o começo que não começa:

“Essa coisa da conversa que não começa serve também para dizer tudo não dizendo, fala-se de ‘o assunto’, ou seja, não se pronunciam as coisas, mas elas são muito claras, e são mais claras através do comportamento do que através da enunciação. Nunca em nenhum momento do espectáculo se fala de machismo ou sexismo, mas há um comportamento que passa essa mensagem. Parece sempre que se vai falar de qualquer coisa e não se fala, porque elas não querem que ele fale, não estão interessadas nisso”, diz.

“O Eterno Debate” conta com interpretação de Catarina Rôlo Salgueiro, Lúcia Pires, Maria Duarte, Rafael Gomes, Rita Cruz e Tânia Alves (foto de Filipe Ferreira)

Ainda sobra tempo para se abordar, ainda que de forma ténue, outros tópicos, como o assédio — quando o homem presente, já de humor perdido e de veias visíveis na garganta, pergunta: “Quer que eu diga o que é que me fez no camarim?” — e ainda a questão da discriminação homofóbica e racial. É como que um outro mundo que ali está exposto, mas não escancarado:

“É um texto sobre o sexismo e as minorias têm circunstâncias de opressão diferentes e obviamente que não se pode falar do racismo e do sexismo da mesma maneira, mas aquilo que acontece é que o espectáculo quase pode ser dividido em dois, de um lado está aquele homem, que representa, se quisermos, um lugar de grande privilégio, e do outro lado estão as mulheres, também está uma mulher negra, também estão duas mulheres que, de certa forma, também têm ali uma relação homossexual que é muito pouco aflorada. E sim, é outro mundo, é como se do outro lado da bandeja estivessem as minorias, as pessoas que sofreram pressão secular, milenar, e que são aqui lugar de poder instituído desde sempre. Nesse sentido sim, há um aflorar das questões de discriminação racial e discriminação por orientação sexual”, esclarece Teresa.

Sendo Teresa Coutinho uma artista profundamente política — e que além do que faz no palco ser uma voz ativa nas reivindicações do sector artístico — este é um espectáculo, diz a criadora, “que marca uma viragem”. E acrescenta:

“Surge de uma vontade de, enquanto criadora, mulher, fazer esta reflexão, deixar este espectáculo como uma reflexão sobre esta problemática que me é muito próxima porque sou mulher e já a vivi e a vivo-a diariamente. E também pensar como é que poderia — até porque muitas vezes quis ter esta discussão com pessoas e nem sempre é fácil — chegar ao público e fazê-lo pensar nisto sem que ele se sinta demasiada afastado ou a não fazer parte de uma discussão qualquer que se está aqui a ter. E sim, sinto uma certa responsabilidade enquanto artista de refletir sobre temas que acho que são essenciais, o que não quer dizer que não se possa trabalhar sobre eles fazendo repertório ou fazendo uma série de outras abordagens à prática teatral”.

O que também não deixa de ser muito interessante é a data em que este espectáculo acontece, poucos meses antes das eleições presidenciais: “Este espectáculo não ia acontecer inicialmente nesta data, ia ser antes, mas depois ficou para esta altura. Ser neste momento acho uma feliz coincidência e estou já até a imaginar alguns debates na televisão entre candidatas e candidatos e mortinha por ver como é que se vai passar. Espero que este não seja um sentido premonitório da minha parte, espero que não, porque seria muito triste”. O debate, no mundo e em Teresa Coutinho, prossegue.