A “inação” dos serviços de saúde poderá ter sido uma das causas de um caso de femicídio, depois de uma mulher ter ido a 45 consultas em quatro anos que se revelaram “oportunidades perdidas de ação”.

A avaliação é feita pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) que no seu 10.º relatório analisa o caso de uma mulher morta pelo marido em 2017, num contexto de constantes desentendimentos por causa de “várias questões da vida conjugal” e um relacionamento “conflituoso e instável”.

“Apesar do ambiente conjugal, nunca haviam ocorrido agressões físicas, sendo que as discussões atingiam, por vezes, níveis de agressividade verbal elevados”, refere a equipa.

A mulher foi morta em 2017 e entre 2014 e esse ano a vítima teve 45 consultas no centro de saúde, havendo registo de “perturbações depressivas”, “perturbações do sono” e a referência a “reação aguda ao stress”, apesar de em nenhum dos registos haver qualquer referência a violência doméstica.

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“Os contactos frequentes que [a vítima] teve com os serviços de saúde nos anos de 2014 a 2017, e em particular no ano de 2016 (em que estão registadas 24 consultas), foram, pelo que se apurou, oportunidades perdidas de ação sobre o quadro de disfuncionalidade familiar em que vivia e que se foi agravando com o decurso do tempo”, lê-se no relatório.

De acordo com a informação do relatório, não há qualquer registo sobre as possíveis causas da sintomatologia da mulher que “acompanhou o período em que o conflito conjugal e familiar se foi agudizando, podendo este explicá-la”.

“Também não existe qualquer registo de que, face à disfuncionalidade do relacionamento familiar, tenha havido intervenção, de natureza terapêutica ou de apoio social, que envolvesse B [agressor], cuja instabilidade emocional, que hoje se conhece, constituía claramente um fator de risco da ocorrência de homicídio e, até, de suicídio”, aponta a equipa.

No entender da equipa, os serviços de saúde, e em particular os serviços de proximidade como os centros de saúde, são “entidades que se encontram numa situação privilegiada para conhecerem e detetarem precocemente sinais de mal-estar, disfuncionalidade e conflito nas relações familiares e de intimidade, e acionarem medidas para prevenção da sua agudização, que procurem evitar a eclosão ou o escalar da violência”, sobretudo pelo relacionamento próximo que muitas vezes se estabelece entre utentes e profissionais de saúde. Essa relação de proximidade é tanto mais importante “nos casos em que a vivência familiar se desenvolve num quadro de grande isolamento social”, como era a situação da vítima.

“Importa enfatizar a importância da atenção a dar a estes sinais por parte dos profissionais das várias disciplinas que exercem funções nos serviços de saúde e da sua formação para os detetarem, para romperem a barreira da inação (seja resultante da força da rotina ou da condescendência face a situações de violência aparentemente menos grave), bem como a importância da organização do setor para o desenvolvimento de uma ação objetiva, atempada, coerente e eficaz”, defende a EARHVD.

No entender da equipa liderada por Rui do Carmo, este caso é paradigmático e demonstra a importância da educação para a igualdade de género, da relevância dos profissionais de saúde estarem atentos aos primeiros sinais de conflito familiar e para a necessidade de atuação antes da ocorrência de maus tratos.

A EARHVD refere ainda que o agressor está preso há três anos e ainda só teve uma sessão de apoio psicológico e ainda não começou a frequentar o programa VIDA, para agressores em contexto de violência doméstica.