A discussão sobre o que é jazz e o que não é jazz é das mais estéreis e obtusas que pode conceber-se e nasce de quem cristalizou um conceito de jazz que tem cerca de 60 anos e resiste a aceitar que o jazz tenha, entretanto, passado por evoluções e ramificações que o fizeram assumir múltiplas formas. Quando Manfred Eicher fundou a ECM em 1969 (ver ECM: Há 50 anos a redefinir o jazz) tratou logo de furtar-se logo a este fastidioso debate ao baptizar a sua editora como “Edition of Contemporary Music” e, nas últimas décadas, tem vindo a acentuar a sua divergência em relação ao jazz mainstream, sanguíneo, exuberante e swingante, ao dar preferência a música fleumática, introspectiva e deslizante.
É disso exemplo paradigmático Promontoire, do pianista francês Benjamin Moussay, que se estreia em nome próprio na editora de Eicher, casa que já lhe era familiar por ser colaborador assíduo do clarinetista Louis Sclavis.
[“127”, de Promontoire:]
Moussay estreou-se a gravar como líder há 18 anos, com o excelente Mobile (2002), em trio, e com esta formação (ou similar) registaria mais dois discos igualmente recomendáveis, Swimming pool (2006) e On air (2010), mas a sua discografia em nome próprio não conheceu acrescentos significativos na última década (se exceptuarmos a parceria com a cantora Claudia Solal).
Promontoire dá a ouvir Moussay em piano solo – uma modalidade favorecida por Eicher logo desde os primeiros discos de Keith Jarrett – num registo intimista e rarefeito e meticulosamente cinzelado (o que não impede que, ao mesmo tempo, as peças sugiram a liberdade de um improviso). A paisagem que se avista deste promontório é plácida e quase sempre enevoada – a excepção é o moto continuo nervoso e vertiginoso de “Don’t look down”. Algumas das peças foram criadas para servir de banda sonora a filmes, mas têm carácter suficiente para sobreviver autonomamente.
[“Don’t look down”, de Promontoire:]
Moussay está, claro, a par da tradição do piano solo no jazz, mas também confessa a profunda admiração pelos grandes pianistas clássicos e pela música para tecla de compositores como Bach, Schubert, Chopin ou Ligeti e em Promontoire são mais evidentes as afinidades com o universo clássico (Satie no ondulante “Theme from Nana”, por exemplo), do que com o universo jazzístico. Entre as peça mais conseguidas de um álbum de nível consistentemente elevado, destacam-se “The fallen”, grave e solene, como uma marcha fúnebre entre névoa, e “Villefrancque”, de uma beleza serena e extremamente depurada.
[“Villefrancque”, de Promontoire:]
Com Rivages, continuamos a contemplar o mar e não estamos longe da melancolia refinada de Promontoires, mas as marinhas da dupla francesa Jean-Louis Matinier & Kevin Seddiki são mais coloridas e têm contornos mais difusos.
Matinier tem sido presença assídua na ECM como sideman de Louis Sclavis, Anouhar Brahem e François Couturier e, em parceria com Marco Ambrosini, rubricou Inventio, um invulgar e frutuoso diálogo entre acordeão e nyckelharpa. Rivages, que é a estreia na ECM de Seddiki, propõe um emparelhamento menos heterodoxo, de acordeão e guitarra acústica, pleno de invenção e lirismo. Além de peças da lavra dos intervenientes, Rivages toma uma canção de Gabriel Fauré (“Les berceaux”), a canção tradicional “Greensleeves” (tornada quase irreconhecível) e “La chanson d’Hélène”, da banda sonora de Philippe Sarde para o filme Choses de la vie (1970), e assimila-as, com sabedoria, para a linguagem e atmosfera do duo.
[“Les berceaux”, de Fauré, em Rivages:]
A natureza líquida e impressionista domina em “Rêverie” e “Miroirs”; na vertente mais viva e faiscante há a destacar “Feux follets” e “In C”, esta última evocando a calorosa fusão ibero-mediterrânica do contrabaixista Renaud Garcia-Fons, cuja música Matinier conhece melhor do que ninguém, como sideman de boa parte dos seus discos e como seu parceiro no álbum Fuera.
[“In C”, de Rivages:]
O trio do pianista polaco Marcin Wasilewski com Slawomir Kurkiewicz (contrabaixo) e Michal Miskiewicz (bateria) é uma das “bandas da casa” da ECM, quer como suporte do trompetista polaco Tomász Stańko quer como trio autónomo, tendo nesta segunda qualidade, rubricado quatro álbuns que se recomendam incondicionalmente: Trio (2004), January (2008), Faithful (2011) e Live (2018). Spark of life (2014) é menos conseguido, por o trio ter convocado, em metade das faixas, o saxofone de Joakim Milder, que desfaz o equilíbrio mágico do trio. O que vale é que está ausente de metade do disco, o que não acontece no novo Arctic riff, em que o “intruso” é o saxofonista Joe Lovano.
Lovano, que, após longa e prolífica carreira na Blue Note, se estreara na ECM em 2019 com o ultra-rarefeito e soporífero álbum Trio Tapestry, é ainda mais nocivo para o Marcin Wasilewski Trio do que Milder. Dir-se-ia que os três polacos se renderam à aura de Grande Mestre que rodeia Lovano e abdicaram de boa parte da sua identidade para se conformarem às concepções estéticas açucaradas de Lovano (“Glimmer of hope”, “Fading sorrow”, “Old hat”) ou para se entregarem a improvisações improdutivas (“Cadenza”, “Arco”, “A glimpse”). O mais preocupante é que duas das faixas mais banais do disco – “Fading sorrow” e “Old hat” – são da lavra do próprio Wasilewski.
Arctic riff não desiludirá os fãs de Lovano (afinal Trio Tapestry foi presença recorrente nas listas de melhores discos de 2019), mas é um passo em falso na discografia do trio.
[“Glimmer of hope”, de Arctic riff:]
Uma nota final para a vertente visual: comparem-se as capas de Promontoire e Arctic riff e concluir-se-á que, depois de praticada com rigor durante meio século, a estética do minimalismo, da sobriedade e da rarefacção corre o sério risco de desembocar no ridículo. Se um dia se fizer um estudo sobre as capas da ECM poderá intitular-se “Five hundred shades of grey”.