O partido espanhol de centro-direita PP subscreveu uma tese que sugeria que o Governo espanhol teria ignorado 11 alertas oficiais sobre o perigo da Covid-19, que lhe teriam sido enviados entre janeiro e março. Mais grave do que isso: o partido está a ser acusado de ter sido autor da tese, construída a partir de frases e excertos “truncados”, retirados de notas e relatórios enviados ao Governo pelo Departamento de Segurança Nacional (DSN).

A tese era de que o Governo espanhol teria sido informado por entidades oficiais para o risco elevado de um crescimento acelerado dos contágios com o novo coronavírus, mas teria ignorado os alertas para permitir uma marcha e manifestação pelos direitos das mulheres a 8 de março. A acusação era de que o Governo liderado por Pedro Sánchez tinha privilegiado conscientemente a ideologia em detrimento da saúde pública.

A história é contada pelo jornal El País, que dá detalhes sobre todo o processo. Segundo o diário, a 31 de julho quatro deputados do grupo parlamento do PP fecharam-se num “bunker” no Palácio de Moncloa, residência oficial do primeiro-ministro espanhol, para analisar notas e relatórios enviados ao Governo de Sánchez pelo Departamento de Segurança Nacional. Mais recentemente, a 30 de setembro, dois destes deputados voltaram a analisar os documentos acompanhados por três senadores do PP.

Para ler os documentos, os elementos da comitiva do PP tiveram de deixar os telemóveis fora do “bunker”, nos dois casos. O mesmo aconteceu com dois deputados do partido de direita radical Vox, a 21 de setembro. De acordo com o El País, porém, os elementos da comitiva do PP não apenas leram como tiraram notas sobre os documentos. Já os do Vox limitaram-se a consultar e ler, sem fazerem anotações.

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Pouco menos de uma semana depois da segunda consulta de documentos por elementos afiliados ao PP, a 5 de outubro, o diário El Mundo escreveu uma notícia revelando que o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, teria recebido 11 alertas sobre o perigo do novo coronavírus entre 24 de janeiro e 14 de março. Não identificando a fonte da informação, o El Mundo incluía citações dos relatórios enviados ao Governo que pareciam mostrar que o executivo de Sánchez tinha sido informado dos riscos da Covid-19 antes da manifestação feminista de 8 de março.

O Partido Popular, que antes tinha insistido na consulta dos documentos, reagiu imediatamente. O secretário-geral do partido, Teodoro García Egea, pediu a comparência do chefe de gabinete de Sánchez e da ministra Adjunta do Governo no Congresso. E o presidente dos populares, Pablo Casado, foi mais longe e, a partir de uma notícia de jornal, escreveu em texto publicado no Twitter que exigia “responsabilidades” ao Governo por “ocultar 11 alertas oficiais”. Queria ainda saber “quantos mortos e desempregados podiam ter sido evitados sem essas mentiras”.

Afinal, porém, os excertos revelados pelo El Mundo que pareciam sugerir que o Governo tinha ignorado os alertas — que o PP assumiu como verdadeiros e que o Governo acredita terem sido “leakados” pelos próprios populares — foram truncados.

Um dos alegados alertas era uma expressão enviada ao Governo na véspera da marcha feminista, a 7 de março. Lia-se no El Mundo a alegada nota: “O aumento de casos nas últimas horas foi maior do que o habitual”. Afinal, a nota original era uma declaração pública, em conferência de imprensa, do diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias, Fernando Simón. E estava incompleta — o que Simón tinha dito fora: “O aumento de casos nas últimas horas foi maior do que o habitual. Porém, tratam-se de casos que se concentram numa comunidade autónoma e em dois núcleos de transmissão bem identificados. Por isso, o risco de transmissão comunitário ou aumento de focos não conhecidos ou sem ligações não aumentou significativamente”.

Outro alegado alerta citado pelo El Mundo que teria chegado ao Governo de Pedro Sánchez antes da manifestação de 8 de março era o seguinte, igualmente contundente: “Não se descarta que o número de mortos aumente nas próximas horas”. Também neste caso a frase foi truncada e citada de forma incompleta. Na nota original, lia-se: “Não se descarta que o número de mortos aumente nas próximas horas à medida que as comunidades autónomas vão notificando o ministério da Saúde de novos casos“.

Em suma, o significado que foi dado à frase quando retirada incompleta — o de que o perigo do novo coronavírus resultaria possivelmente num aumento do número de mortos —, é distinto do significado original da nota: não se escrevia assim que o número de vítimas ia aumentar por motivos de crescimento dos infetados e doentes, mas por mera contabilização e envio ao Governo de informação que ainda estava a ser recolhida.

O mesmo terá acontecido com outras notas oficiais que, tendo sido descontextualizadas, surgiram truncadas na notícia do El Mundo que o PP subscreveu, difundiu e que pode até ter ajudado a criar.