“Em primeiro lugar é preciso não esquecer que, acima de tudo, isto é um setor de pessoas” — é assim que Paulo Amado, proeminente figura da divulgação gastronómica portuguesa e coordenador das Edições do Gosto começa por explicar o mote do Congresso Nacional dos Cozinheiros de 2020 (CNC), evento que foi apresentado oficialmente esta quinta-feira e que, em ano de pandemia e seus efeitos “secundários”, propõe debruçar-se sobre um dos temas tabu do setor da restauração e hotelaria: a saúde mental de quem nele trabalha.

Enquanto principal responsável pela organização deste CNC, que acontece há 15 anos e é sempre aberto ao público das cozinhas e não só, Paulo explica que chegou o momento de começar a olhar mais a sério para a fragilidade daqueles que fazem sempre por parecer invencíveis: os cozinheiros e cozinheiras que muitas vezes querem perpetuar a imagem de ‘rockstar’ que se vê na TV mas que no fundo são humanos como todos nós.  É com o lema “#nósaspessoas” que este CNC irá decorrer entre os dias 10 e 12 de novembro, em Oeiras, entre as 9h30 e as 19h e foi à boleia desse tema que o Observador falou com o líder da equipa que organiza esta festa da cozinha e todos os seus aspetos: técnicos, claro, mas humanos, também.

O Congresso Nacional dos Cozinheiros tem vindo a ser organizado na Lx Factory mas este ano muda-se para Oeiras. D.R.

De forma mais ou menos óbvia prevalece uma ideia de que os chefs (e o ambiente) de cozinha profissional é muitas vezes de cortar à faca. A tensão, a constante adrenalina e a exigência de perfeição criam o habitat ideal para um clima de agressividade, excessos e violência, tudo cenários que muitas vezes desembocavam em comportamentos de risco, graves problemas do foro mental e em relações (de trabalho e não só) tóxicas. Veja-se como exemplo os programas de televisão do britânico Gordon Ramsey, as histórias narradas por Anthony Bourdain no seu épico Kitchen Confidential, as aventuras e desventuras do ‘bad boy’ Marco Pierre White… Os exemplos são mais que muitos. O que mudou então para agora se fale desse elefante na sala, que em muitos casos era visto como algo normal? “Há uma coincidência de temas. A Covid fez-nos todos pensar um pouco mais sobre nós mesmos, sobre o outro e sobre a relação que temos entre todos. Durante um tempo fui falando quase diariamente com cozinheiros de todo o país e vi pessoas que conheço há muito (eu já estou nisto há 20 anos) com uma pressão enorme! Viam-se as lágrimas de incerteza.”, começa Paulo por explicar.

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O ambiente deste setor que já por si era tenso ganhou novos contornos com os desafios trazidos pela pandemia (a incerteza do futuro, a luta pela sobrevivência, a falta de sustento) e a corda, finalmente, parecia querer romper. “A pandemia criou uma inegável pressão extra e acho que isso gerou um bom momento para revermos o equilíbrio de forças que existe no setor, daí termos decidido dar este tema ao congresso”, conta Paulo Amado. A juntar a isto, o dinamizador cultural/gastronómico ressalva ainda o surgimento de uma nova geração de cozinheiros e empresários que, apesar de “gastronomicamente ainda se estar a afirmar”, mostra-se muito mais sensível a este tipo de assuntos: “Esta nova geração partilha muito. Dá maior destaque e importância ao papel das mulheres, à diversidade cultural… São temas que lhes são muito caros, mas isso não quer dizer que também não fossem às gerações anteriores que ainda estão no ativo. Estes simplesmente vêm munidos de grandes vontades.”

Momentos de crise acabam por se transformar, eventualmente, em renovação, daí a importância de abordar este tema agora. Isto porque o “sistema de vítima-vilão”, que concorre para “criar vítimas que depois, por sua vez, vão acabar por se tornar vilões e assim sucessivamente”, não deve continuar a ser eternizado e este momento pode ser relevante para o quebrar. “É um ciclo que não acaba e a nós não nos interessa que isso continue assim. Temos consciência de que ele existe e queremos dar o nosso contributo para que ele acabe”, remata Paulo.

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Na prática, portanto, trata-se de um objetivo dividido em três pilares que serão analisados através do diálogo (estão previstos vários workshops, debates e ações de formação sobre o assunto). O primeiro é o assumir e discutir a realidade de problemas como “a quantidade de horas de trabalho, alguma toxicidade na relação entre as pessoas e ainda a forma como alguns têm necessidade de encontrar escapes tóxicos que interferem com a sua saúde física e mental”; o segundo passará por ter as pessoas do meio — “são elas que dizem o que esta mal e o que está bem” — a tentar definir uma série de guidelines sobre como pode ser melhorada a liderança num ambiente de cozinha profissional ; e finalmente o terceiro — e talvez o mais revolucionário — passará por disponibilizar 120 consultas de psicologia (oferta que surge da parceria do CNC com a Oficina da Psicologia) que serão disponibilizadas gratuita e sigilosamente.   

Não é comum o setor abrir-se desta maneira, não existem muitos projetos do género. Nós estamos a abordar isto de uma forma integrada porque queremos sinalizar o problema, agir sobre o setor e agir sobre as pessoas. Esta área sempre teve, de alguma forma, temas tabu. No entanto estou certo de que este assunto interessa a toda a gente. Queremos equipas fortes e saudáveis a trabalhar nesta componente importante para a economia e cultura do país.

A ajudar a tudo isto há um suporte videográfico forte, a ser apresentado em dois momentos: “O primeiro será de apresentação das pessoas, gravámos uma série deles e queremos continuar. Eu, o videógrafo Fábio Silva e o fotografo Theo Gould andámos pelo país. O Theo tirou fotografias (temos centenas) e o Fábio gravou as minhas entrevistas”, explica Paulo. Este formato será apresentado em modo documentário, no congresso. O segundo momento diz respeito a uma espécie de campanha de redes sociais com vídeos mais simples, de depoimentos na primeira pessoa feitos por intervenientes do meio que foram convidados pela organização a partilhar, “num tom construtivo”, as suas “experiências e a visão” sobre este assunto.

Paulo Amado é um dos rostos principais da dinamização cultural e gastronómica do país – e organiza anualmente o Congresso dos Cozinheiros. Luís Ferraz

Por esta altura, os participantes mais assíduos deste evento anual já poderão questionar-se: “E as outras apresentações de chefs nacionais e internacionais que costumam acontecer no CNC?” Nada a temer, Paulo garante que apesar das necessárias adaptações ao contexto de pandemia (“a situação atual vai-nos permitir ter poucas pessoas no auditório do Taguspark mas vamos fazer a transmissão online”), “o Congresso vai querer continuar a apresentar os novos projetos, os novos temas, as novas pessoas, os projetos de sempre, as pessoas de sempre.” O organizador explica que haverá um programa semelhante ao dos anos anteriores, com várias apresentações e debates, que se conjugará nesta missão pela saúde mental. A imprevisibilidade deste contexto de pandemia obriga a organização a fazer constantes ajustes e adaptações do seu programa completo, daí ainda não haver um documento formal com tudo o que vai acontecer. É aconselhável ir acompanhando o site oficial do evento para se ficar a par de mais novidades.

Por enquanto sabe-se que entre demonstrações, apresentações, entrevistas e debates contam-se mais de 24 horas de conteúdo repartidas por mais de 50 oradores — Ana Paul Reis, Antom Sarkar, Bel Coelho, Duarte Calvão, Henrique Sá Pessoa, José Júlio Vintém, João Sá, Tiago LimaCruz, Pedro Bandeira Abril, Matt Orlando, João Rodrigues, João Ferraz, Nuno Mendes, Paco Roncero e muitos mais ainda por anunciar.