“Shakespeare com samurais, que magnífica ideia!”, disse Orson Welles quando viu “Trono de Sangue” (1957), de Akira Kurosawa, baseado em “Macbeth”, de William Shakespeare. O que Welles não devia saber é que há bastantes anos que o cineasta japonês queria levar esta peça ao cinema, mas teve que esperar mais algum tempo depois de Welles se lhe ter antecipado e rodado o seu “Macbeth”, em 1948. Entretanto, o entusiasmo de Kurosawa tinha-se atenuado e quando surgiu a possibilidade do projeto andar para a frente, a sua ideia era ser apenas o produtor. No entanto, perante os custos do filme, os responsáveis dos estúdios Toho, insistiram para ser ele a realizar “Trono de Sangue”, e Akira Kurosawa anuiu.

O autor de “Os Sete Samurais” optou por não usar uma tradução japonesa do texto original, trabalhando antes com um argumento fiel à história nas personagens, na letra da narração e na essência da tragédia e da dimensão moral, afeiçoando a peça, passada na Escócia do século XVII, à época feudal nipónica. Kurosawa sabia que o contexto histórico-militar e social de “Macbeth” cabia na perfeição no ambiente do Japão dos samurais, “daimyos” e clãs em luta pelo poder nessa era, e que os temas de “Macbeth” — lealdade, traição sangrenta e castigo, ambição desmedida e fatal pelo poder -, têm uma reverberação e um alcance universais, que transcendem limitações geográficas e balizas temporais.

[Veja o “trailer” de “Trono de Sangue”:]

“Trono de Sangue” é Shakespeare filtrado pelo génio cinematográfico de Kurosawa, um “Macbeth” onde as palavras são substituídas por imagens turbulentas, poéticas ou irreais, e a história é contada e conduzida por uma ideia eminentemente visual, a preto e branco, com luzes e sombras, movimento e imobilidade, nevoeiro, vento e chuva, e recorrendo a técnicas e elementos do teatro Nô. Ver os interiores despojados, a caracterização e a movimentação da Senhora Asaji (Isuzu Yamada), a manipuladora mulher do ambicioso general Washizu (Toshirô Mifune em mais uma das suas interpretações estuantes de agitação e de expressividade exaltada) e o uso de instrumentos musicais característicos do Nô, como a flauta e o tambor.

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[Veja uma cena do filme:]

Além da realidade histórica, da especificidade cultural e do temperamento, Akira Kurosawa adequa também os aspetos fantásticos de “Macbeth” ao sobrenatural nipónico. Em vez das três bruxas originais, as “weird sisters”, “Trono de Sangue” tem apenas uma, espectral e trocista, mas que cumpre perfeita e exactamente a mesma função das do trio da peça de Shakespeare, reforçando o tema da predestinação trágica (a roca que fia o destino inescapável das personagens) e introduzindo-lhe notações budistas: a impermanência e a futilidade das ações, paixões e ambições humanas, e a negação de salvação aos que prevaricam (no final, o coro diz que o fantasma de Washizu ainda está neste mundo).

[Ouça o tema musical do filme:]

Conhecido pelo título alternativo “O Castelo da Aranha” (em japonês, chama-se precisamente “O Castelo da Teia de Aranha”), aludindo às tramas que não só as personagens, como também o próprio destino, tecem, e das quais acabam prisioneiras, o filme tem várias sequências assombrosas e memoráveis, como a inicial, dos dois samurais perdidos no labirinto da floresta, a dos pássaros que invadem o castelo cercado como um mau agouro, ou a da morte de Washizu às mãos das suas próprias tropas, qual ouriço humano eriçado de flechas. Kurosawa usa ainda, de forma tão brilhante como subtil, a meteorologia como correlativo visual dos estados de espírito e da temperatura emocional das personagens, e para enfatizar a carga dramática das atmosferas.

“Trono de Sangue” é uma obra-prima do cinema, o encontro tremendo, febril e deslumbrante de Akira Kurosawa com William Shakespeare, entre samurais e névoa, ventania e chuva, fantasmas e flechas.

“Trono de Sangue” estreia no Nimas (Lisboa) e no Trindade (Porto), incluído no ciclo Sete Kurosawa