A associação Habita considera que “não se passou praticamente nada” no primeiro ano da entrada em vigor da Lei de Bases da Habitação, mostrando-se preocupada com o recente decreto-lei de regulamentação, devido à falta de respostas de emergência habitacional.

“Não houve uma regulamentação, na verdade não se passou praticamente nada em torno da lei de bases, isso preocupa-nos”, disse à Lusa Rita Silva, porta-voz da associação Habita, lembrando que o prazo de regulamentação era de nove meses após a publicação do diploma no Diário da República. Como a publicação aconteceu em setembro de 2019, a regulamentação deveria ter sido elaborada até maio de 2020, mas só em 02 de outubro é que foi publicado o primeiro decreto-lei para o efeito.

Adaptando os programas 1.º Direito, Porta de Entrada e de Arrendamento Acessível, bem como a orgânica do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), o diploma de regulamentação entra em vigor no dia 02 de novembro – com exceção das adaptações do Programa de Arrendamento Acessível, que apenas são aplicadas 90 dias após a publicação, ou seja, no fim de dezembro.

Ressalvando que a associação Habita ainda está a analisar com detalhe o decreto-lei de regulamentação, Rita Silva adiantou que uma das preocupações tem a ver com o papel do IHRU como promotor e coordenador da política de habitação, em que se determina a possibilidade de “participar em sociedades, fundos de investimento imobiliário, consórcios, parcerias públicas e público-privadas e outras formas de associação”.

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Outra das preocupações é que “há em todo o texto uma tendência de mudança da linguagem – de habitação pública e habitação social para habitação com interesse social” -, uma vez que pode significar que as novas políticas sejam novamente financiar os atores privados e não aumentar, efetivamente, a oferta pública acessível.

Relativamente à adaptação dos programas em vigor, a porta-voz da Habita sublinhou que estarão sempre dependentes de orçamento e da sua execução, pelo que “é fundamental que haja o pacote financeiro necessário, porque se não houver tudo fica no papel”.

Classificando como “muito insuficiente” o decreto-lei de regulamentação da Lei de Bases da Habitação, Rita Silva adverte que o diploma não incide sobre os problemas fundamentais no setor e “continua a não garantir efetivamente o direito à habitação”.

Não referem nada sobre o impedimento de continuar a haver demolições e despejos sem alternativas de habitação, ou seja, o direito à habitação continua a não estar consagrado como direito inalienável, humano e constitucional”.

Para a Habita, “há vários domínios que devem ser regulamentados com toda a urgência”, para que o objetivo da lei de bases que reflete o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa sobre o direito à habitação se possa concretizar, nomeadamente a proteção e o acompanhamento no despejo, e a regulação do arrendamento habitacional que estabeleça um sistema de renda compatível com o rendimento familiar.

Apesar da decisão de se suspender o ato de execução dos despejos no âmbito da pandemia de Covid-19, “os processos em tribunal ou os atos administrativos estão a decorrer”, alertou Rita Silva, defendendo que devem ser implementadas medidas para evitar que os processos sejam executados mais tarde.

Reforçando a importância da lei de bases, a associação lembrou que “já existia uma crise habitacional e que, neste momento, o que se está a instalar é uma crise social e económica grave” em resultado da pandemia de Covid-19, pelo que a regulamentação desta legislação “é urgente, necessária e deve garantir, efetivamente, o direito à habitação para todas as pessoas”.

Na perspetiva da plataforma Stop Despejos, o balanço do primeiro ano da entrada em vigor da Lei de Bases da Habitação “é desastroso”, em particular durante a crise pandémica de Covid-19, até porque “a implementação prática tem sido nula”.

“Se virmos o que tem acontecido agora durante a pandemia, é extremamente grave, porque os despejos continuam a acontecer e não há garantias nenhumas de que as pessoas sem alternativas de habitação não vão parar à rua”, referiu João Eça, membro da Stop Despejos, em declarações à Lusa.

Com intervenção junto de pessoas em condição de sem-abrigo na cidade de Lisboa, a Comunidade Vida e Paz apoia a lei de bases, por prever a integração do direito à habitação nas políticas de erradicação de pessoas em condição de sem-abrigo, defendendo que, se estivesse regulamentada, neste momento de pandemia, “os resultados poderiam ser, sem dúvida, muito mais benéficos para as pessoas que estão na rua”.

“Temos conhecimento de que algumas pessoas têm ficado desalojadas, porque ficaram desempregadas e financeiramente não têm condições para suportar rendas […]. Com certeza que, com a regulamentação da lei, poderíamos estar a falar de outro tipo de cenários, sobretudo nesta altura para a qual ninguém estava preparado”, referiu a diretora-geral, Renata Alves. Verifica-se ainda, acrescentou, “um grande número de pessoas que se encontra em situação sem-abrigo e tudo indica que vai aumentar”.

Antes da pandemia, esta instituição de apoio a sem-abrigo, que oferece uma ceia e pretende estabelecer uma relação de confiança para ajudar a sair da rua, acompanhava “cerca de 430 pessoas” na cidade de Lisboa, mas o início da pandemia aumentou para 800 o número de pessoas apoiadas.

Nos primeiros tempos, passámos a ter de reforçar as nossas ceias e, em vez de distribuirmos 430, estávamos a distribuir 800. Entretanto, estamos com a distribuição entre 500 e 550, ou seja, estamos a apoiar entre 500 e 550 pessoas que estão nas ruas”.

Além da “efetiva garantia” do direito à habitação a todos os cidadãos, estabelece a função social da habitação, em que “os imóveis ou frações habitacionais detidos por entidades públicas ou privadas participam, de acordo com a lei, na prossecução do objetivo nacional de garantir a todos o direito a uma habitação condigna”.