Foi assim com o Famalicão, foi assim com o Moreirense, foi assim com o Farense (e depois o Campeonato parou). Apesar da derrota inicial na Grécia frente ao PAOK que se traduziu no afastamento da Liga dos Campeões, a versão 2.0 do Benfica com Jorge Jesus guarda várias partes do software que acompanhou a equipa ao longo de seis anos, de 2009 a 2015: uma equipa vocacionada para o ataque, que entra a tentar dominar, que procura desde o início o golo para depois gerir momentos, que tira metros sem bola e quer ganhar em posse. Foi essa vertigem ofensiva que ajudou a explicar os três primeiros sucessos no plano nacional mas com nuances que não se limitaram a dores de crescimento, nomeadamente no plano defensivo contra os algarvios onde a equipa sofreu três golos na Luz. E se do meio-campo para a frente o técnico trabalha para melhorar, do meio-campo para trás está a construir.

O segundo golo da formação de Faro foi muito contestado por uma falta não assinalada sobre Otamendi, o primeiro nasceu de um canto após duas grandes penalidades defendidas por Vlachodimos que dispersaram a concentração coletiva. São factos. Mas o conjunto de Sérgio Vieira conseguiu mais do que isso: fazendo entrar o primeiro passe para a zona de construção e explorando a profundidade nos espaços lateral-central e nas costas dos centrais, os visitantes conseguiram criar problemas. De forma mais abrangente, essa era a peça por montar no xadrez tático de Jesus – saltando a pressão alta das unidades mais adiantadas, e até pelas características dos jogadores que passam pela posição ‘8’, a defesa ficava demasiado exposta. E é aqui que entra o internacional belga Jan Vertonghen.

Depois de ter fraturado o malar direito há 22 dias, o defesa falhou a receção ao Farense, não esteve nos jogos da Bélgica mas fez um esforço para poder ser opção para a difícil deslocação a Vila do Conde. “Durante a semana deu indicações positivas, treinou-se com máscara. Não é caso virgem no futebol mundial, tive um caso no Flamengo igual [Rafinha]. Tem a ver com o jogador, com a disponibilidade do jogador mesmo com receios, se o jogador está ficado no compromisso da equipa, se a equipa técnica quiser lançar no jogo. Está disponível e vai connosco”, disse Jorge Jesus no lançamento de uma partida onde Jardel também foi convocado, Todibo ficou de fora por estar em fase de adaptação e Ferro caiu da lista por opção técnica. Era a estreia de uma nova dupla, com Otamendi.

Na antecâmara da estreia na Liga Europa, numa temporada que será um desafio para qualquer treinador no plano da gestão tendo em conta a densidade competitiva até maio, o Benfica entrava em campo como única equipa só com vitórias na Primeira Liga e podia aproveitar o empate no clássico entre Sporting e FC Porto (além da derrota do Santa Clara em Paços de Ferreira) para ganhar uma vantagem de cinco pontos mesmo tendo os leões um jogo em atraso com o Gil Vicente. E confiança não faltava, como se viu nas dezenas e dezenas de adeptos encarnados que se concentraram na zona dos autocarros do Estádio dos Arcos para saudar a equipa. No final, e com aqueles que foram os 45 minutos mais conseguidos da temporada, os encarnados venceram mesmo por 2-0.

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Vertonghen, a jogar de máscara, mesmo não tendo muito trabalho pela frente, foi providencial para agarrar numa linha defensiva que teve um Gilberto em estreia logo no quarto de hora inicial, um Otamendi que ainda se está a habituar às rotinas da equipa sobretudo na saída de bola e um Grimaldo mais reservado nas ações ofensivas do que é normal. Waldschmidt, com dois golos, provou que reúne as características de segundo avançado que Jesus tanto pretendia, à semelhança do que acontecera antes na Luz com Saviola ou Lima, entre outros (ainda que sem haver uma comparação individual das características destes jogadores, todas elas diferentes). No entanto, e mesmo sem ter máscara ou golos que o destacassem como tal, Darwin Núñez acabou por ser um dos heróis da partida, não só pela assistência para o 2-0 mas também pela forma como soube o que fazer sempre que foi chamado ao jogo. E existe já algum mérito de Jorge Jesus naquilo que o uruguaio já consegue oferecer de diferente à equipa.

Olhando para as unidades mais ofensivas como Rafa, Everton Cebolinha, Luka Waldschmidt, Pizzi, Pedrinho ou Chiquinho, e atendendo às características de Seferovic, a lógica diria que o técnico iria trabalhar o jovem avançado que atuava na Segunda Liga espanhola (Almería) a nível de último toque. Aliás, sendo um jogador mais móvel na frente, esse era um dos pontos que quem o conhecia admitia que teria de ser trabalhado. Esta noite, em Vila do Conde, aquilo que se viu foi um Darwin a marcar “golos” que não entram na ficha: interpretou da melhor forma as zonas de pressão, deu profundidade quando a equipa necessitava, foi uma referência mais posicional em ataque organizado, soube quando e como cair nas alas. Mesmo sem fazer a primeira festa individual, a contratação mais cara de sempre do Benfica assumiu um papel de destaque e mostrou toda a margem de progressão.

Apesar de ter pela frente uma das equipas com mais “rodagem” nesta fase por ter começado mais cedo a temporada e também uma das melhores equipas na ideia de jogo, Jesus não abdicou das mesmas opções que tinham derrotado o Farense há duas semanas, recusando a possibilidade de reforçar o corredor central com a entrada de Weigl e deixando Pizzi perto de Gabriel com Rafa e Everton nas alas e Waldschmidt no apoio a Darwin. Cedo se percebeu porquê: sem medo do risco, os encarnados assentaram arraiais no meio-campo contrário, fixaram a última linha para definir o campo de jogo a metade e foram dando largura ao jogo com bola entre alas e laterais. Mais do que isso, a densidade de elementos visitantes a defender sem bola permitia que Gabriel jogasse mais subido, como se viu no lance que inaugurou o marcador: recuperação do brasileiro, cruzamento de Rafa com pequeno desvio de Darwin, assistência de calcanhar de Everton e míssil de Waldschmidt na área para o 1-0 (6′).

O mais complicado estava feito, o mais fácil estava ainda para chegar: apesar da saída por lesão de André Almeida que proporcionou a estreia a Gilberto, o Benfica manteve a vertigem ofensiva, conseguindo criar oportunidades ou em jogo rápido organizado quando havia mais espaço entre linhas ou na sequência de zonas de pressão mais altas que aproveitavam essa recusa dos vila-condenses em jogar mais direto na frente a não ser em último caso. Rafa, numa diagonal com remate à entrada da área para defesa de Kieszek, deu um exemplo desse tipo de situações (25′) entre dois golos anulados pelo VAR a Darwin (18′, após roubo de bola a Aderllan Santos e assistência de Waldschmidt) e Waldschmidt (29′, neste caso após lançamento de Darwin em profundidade). Primeiro por 46 centímetros e depois apenas por dez os encarnados não aumentaram a vantagem. Mas seria uma questão de tempo.

Quando já se pensava no intervalo, e depois de uma tentativa de meia distância de Grimaldo ao lado (num jogo onde o espanhol esteve menos balanceado na frente do que é normal, sendo que mais de metade dos ataques das águias foram feitos pela direita na primeira parte), Darwin Núñez conseguiu ganhar de cabeça, galgou metros para deixar Ivo Pinto para trás e, na área, assistiu Waldscmidt para o segundo bis na prova – primeira vez que consegue o feito na carreira – na cara do guarda-redes contrário (45+4′). Quando a equipa da casa esperava pelo descanso para acertar posicionamentos e rever critérios de jogo, o Benfica aumentou a vantagem, adensando ainda mais as dificuldades de um Rio Ave com pouca ligação de setores e várias falhas individuais e coletivas sem bola.

Mário Silva preferiu não mexer logo ao intervalo, acreditando que as mudanças posicionais poderiam surtir efeito, e, já depois de um remate de fora da área de Darwin que passou muito perto, Lucas Piazon teve a primeira chance de golo para os vila-condenses no jogo, bem travada por Vlachodimos na “mancha” (54′). O Rio Ave mostrava uma ligeira melhoria na partida perante algum abrandamento na intensidade dos encarnados mas o conjunto de Jesus não dava grandes hipóteses para a criação de desequilíbrios. Nem as entradas de Pelé, Gelson Dala e Ronan foram suficientes para mudar essa evolução da partida, que voltou a ter Darwin a brilhar numa jogada individual pela esquerda que acabou em penálti de Aderllan Santos antes de ser anulado pelo VAR (68′).

Com Gabriel a tomar conta do meio-campo como aconteceu ao longo do jogo, Weigl a dar outra capacidade a nível de recuperação no corredor central e Pizzi a conseguir outro tipo de posse de maior controlo, o Benfica quebrou de vez as intenções do Rio Ave em reentrar na partida, sendo que o golpe final apareceria a seis minutos do final com o médio brasileiro a ir à área aproveitar uma segunda bola para fuzilar Kieszek e fazer o 3-0 (84′). Em mais uma saída complicada no plano teórico, como tinha acontecido em Famalicão, o Benfica conseguiu ganhar de forma convincente e a marcar três ou mais golos, naquela que foi a exibição mais sólida no Campeonato por conciliar não só um ataque mortífero mas também uma defesa que praticamente não deu chances ao Rio Ave.