Já não vou dizer que os anos passam depressa porque isso é coisa que sabemos desde a adolescência, mas as décadas? A que velocidade passam as décadas? Ainda somos do tempo em que 20 anos era muito tempo. Se alguém fazia alguma coisa há 20 anos, fazia-o há uma vida. Era o Carlos do Carmo da carpintaria, a Simone do ponto-cruz, o Oliveira da assessoria de imprensa, do que fosse. Eis senão quando somos nós lá, já, a reportarmo-nos a coisas que aconteceram há 20 anos ou mais.
Há dias li, imagine, que estavam a publicar justamente uma edição comemorativa dos 20 anos de All That You Can’t Leave Behind dos U2 – é obsceno! 20 anos tem o Achtung Baby – toda a gente sabe! Para sempre! Ou querem convencer-me de que coisas como a Expo 98 algum dia também terão acontecido há 50 anos? Ridículo.
E, no entanto, para efeitos estatísticos e – oiço dizer – biológicos, isto conta mesmo tudo. Não perdoam uma voltinha ao Sol. E assim como a protagonista, argumentista e realizadora de “Rapper aos 40” Radha Blank, eis-nos já tendo cumprido infância, adolescência, vintes, trintas e agora aqui, a dias de completar os grandes, adamastorianos, 40. Como é que isto aconteceu? Não fazemos a menor ideia. Eu juro que vinha devagar.
Radha Blank não é exatamente uma estrela. É uma argumentista e MC nova-iorquina que integrou as equipas de escrita de séries como “Empire” ou o spin-off de “Os Bons Amantes”, (“Shes Gotta Have It”, filme de estreia de Spike Lee, em 1986). Em “Rapper aos 40”, ou melhor, no mais interessante e polissémico original “The 40-Year Old Version”, estreado e distinguido em Sundance, salta pela primeira vez também para trás das câmaras e alcança, de longe, o momento mais mediático da carreira. E como? Fazendo um filme sobre ela mesma, ou uma versão muito parecida disso: uma escritora quarentona à procura do que fazer à carreira e à vida. Acertou em cheio – e, por isso, paradoxalmente, nunca mais poderá fazer outro filme assim.
[veja aqui o trailer de “Rapper aos 40”:]
“The 40-Year Old Version” sofre daquele mal de ter um trailer muito bom: os melhores momentos já estavam todos lá. De maneira que vemos o filme como uma viagem confortável, mas não surpreendente, com paragem nas grandes piadas que conhecíamos de antemão (mais as outras duas melhores coisas do filme: a belíssima fotografia a preto e branco, em 35 mm, e a estreia dum carismático Oswin Benjamin, aliás, “D”, o produtor de beats que vai acompanhar Radha na descoberta da sua verdadeira voz). Mas esta comédia ambientada no Harlem e que pode encontrar, por estes dias, na Netflix, toca naturalmente ao coração fraco de qualquer artista não-aclamado com que tudo o que sonhou (98% dos casos, portanto).
Radha, que usa e abusa do nome próprio para batizar a personagem, é uma dramaturga a quem se augurou tudo, que foi incluída numa lista dos “30 com menos de 30 a seguir com atenção” e que foi efetivamente seguida com atenção, mas… depois não aconteceu nada. Não confirmou o que esperavam dela, ficou a dar aulas – ó indignidade! – de drama no liceu e, agora, à beira dos 40, tem oportunidade de levar uma peça à Broadway, desde que aceite escrever o que o produtor (J. Whitman, Reed Birney) quer.
E aqui entra o mistério das décadas: na cabeça de Radha, aquela inclusão nos “30 com menos de 30 a seguir” não aconteceu há muito tempo, ainda está ali, em vigor, é uma medalha ao peito… Mas, para o mundo, não; para o mundo, passaram dez anos. E esta é a questão, caro leitor: quanto tempo tem uma década? 10 anos, ok – mas em quanto tempo passa? Dizem que o tempo voa quando nos estamos a divertir e que demora quando estamos em sofrimento – mas e quando não nos estamos a divertir nem a sofrer? Quando estamos só a pensar, a planear como vamos ser o que acreditamos que somos capazes de ser? Quando estamos a ensaiar o salto para que saia mesmo bem e, depois, afinal, percamos a confiança para o fazer – ou os joelhos já não o permitam, como os de Radha, sempre a chiar de cada vez que se baixa?
Hoje em dia, o mundo é mais fácil porque o sonho é ser influencer. Mas no tempo em que o verdadeiro artista não queria influenciar ninguém, só ser amado como um deus, putos como este que vos fala cresciam a querer ser levados em ombros pela multidão em Glastonbury, receber o Nobel da Literatura só pelo escritor que achavam que podiam ser; ensaiavam, pelo sim, pelo não, um discurso para os Óscares – só naquela. Depois, vem a vida, não é? E, se o jogador de futebol tem os relatadores e comentadores e grafismos, todos os dias, todo o dia, a lembrar-lhe a idade, o peso e a atualização do palmarés a cada momento, o menino-prodígio da arte não; tem só algum talento, um grande ego e muita fragilidade.
Nesse delicado equilíbrio químico, se dá a sua invenção – ou o seu fracasso. E como, entretanto, cresceu e tem contas para pagar, escreveu as peças que o produtor quis. “A peça já não é minha”, diz Radha, “A próxima será”, contrapõe o agente (Archie, Peter Y, Kim). É nesta ideia que persiste todo o escritor profissional: escreve para os outros para que a próxima seja a dele.
E se não for?
“Até os meus sonhos precisam de reescrita”, diz a protagonista numa das frases mais felizes do filme. Se nem tudo tiver corrido mal, aos 40, temos ao menos a capacidade, nunca antes atingida pelas décadas anteriores de nos sabermos perdoar. Dificilmente o rap será a saída, como foi para Radha, mas a voz far-se-á ouvir – liberta, por fim, da angustiante tarefa de ter se encontrar.
Alexandre Borges é escritor e argumentista