Já foram registadas centenas de mutações no SARS-CoV-2, mas nem todas despertaram tanto interesse dos cientistas como a mutação D614G na proteína spike (que dá aspeto coroado ao vírus): desde março que a variante G614 tem ganhado terreno em relação à variante D614. Num artigo publicado na revista científica Nature, a equipa da Universidade do Texas explica porquê: a variante G614 faz com que o vírus tenha mais facilidade em disseminar-se.

Notámos um aumento da frequência [da variante G614] a partir de março, que chegou a 60% em maio e 75% em junho. Agora, está acima de 90%”, diz ao Observador Vítor Borges, investigador no Departamento de Doenças Infeciosas do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa).

Uma mutação num único aminoácido (as letras que permitem escrever as proteínas) da proteína spike provocou uma diferença significativa. A equipa norte-americana verificou que os vírus com a variante G614 tinham uma maior capacidade para se replicarem, especialmente nas vias aéreas superiores, duas características que juntas permitem que o vírus seja mais facilmente transmitido de uma pessoa para outra.

A capacidade de transmissão é maior, porque a carga viral também é maior, mas isto não quer dizer que provoque doença mais grave”, diz Vítor Borges. Isso ainda não se sabe.

Vítor Borges explica que já havia algumas demonstrações sobre o potencial de replicação (multiplicação) dos vírus com a mutação G614, mas sobretudo em linhas celulares (conjunto de células analisadas em laboratório). A novidade do artigo agora publicado é que testa as infeções em hamsters (logo, em organismos vivos) e com um modelo das vias aéreas humanas (com células da traqueia e dos brônquios em várias camadas para simular um tecido humano).

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Num dos ensaios, cada um dos hamsters foi infetado com a mesma quantidade de vírus com a variante D614 e com a variante G614. Ao fim de alguns dias, a variante G614 tinha conseguido replicar-se muito mais. O mesmo aconteceu no modelo de vias aéreas humanas. Mas os investigadores foram mais longe: mesmo quando a quantidade inicial de vírus com variante D614 era maior, em alguns dias a variante G614 conseguiu tornar-se mais frequente, por ter muito mais sucesso na replicação.

A variante G614 mostrou ainda outras características que despertaram a atenção dos investigadores. Por um lado, os vírus com esta variante eram muito mais estáveis a várias temperaturas do que a variante D614. Por outro, e contra aquilo que esperariam, os vírus com a variante G614 mostraram ser ligeiramente mais suscetíveis aos anticorpos neutralizantes produzidos contra a variante inicial (D614).

“Isto significa que a mutação G é melhor na ligação à ACE2 [a proteína na superfície das células à qual se liga a spike], mas também que os anticorpos têm um acesso mais fácil ao RBD [“receptor-binding domain”, o local da spike que se liga à ACE2] e podem neutralizá-lo um pouco melhor”, explica ao Observador Marc Veldhoen, virologista no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa.

Quer isto dizer que a troca de um único aminoácido na variante G614 é o suficiente para fazer com que o formato tridimensional da proteína spike se altere, expondo mais o local que é o alvo dos anticorpos — o RBD —, o  que permite que se liguem melhor ao vírus bloqueando a ação da proteína usada para entrar nas células.

A equipa da Universidade do Texas conclui assim que apesar de as vacinas terem sido criadas com base na variante D614 da proteína spike não há razão para acreditar que não funcionem na variante G614. Aliás, muito pelo contrário, se a variante do vírus G614 for mais suscetível aos anticorpos neutralizantes pode ser que também o seja em relação à vacina.