Esta tarde arranca o debate do Orçamento do Estado para 2021, 12 horas previstas de debate parlamentar distribuídas por dois dias, com uma novidade de base este ano: o Bloco de Esquerda e o Governo vão aparecer de costas voltadas pela primeira vez desde 2015. E com facas afiadas já nas últimas horas pré-debate. No Governo reclama-se que em todo o processo negocial do Orçamento houve 68 matérias em que se aproximou do Bloco, no partido liderado por Catarina Martins argumenta-se que das 35 propostas que levou à mesa, apenas 4 tiveram acolhimento total ou aproximação.

Há agora um conjunto de alterações negociadas entre as partes já depois do Orçamento ter sido entregue que estão em terra de ninguém. O BE quer ir mais longe e apresentará propostas de alteração nesse sentido — que sabe que não serão acompanhadas pelo PS. Já o Governo, que ponderou ir mais longe em alguns temas, por agora só admite ao Observador que vai avaliar estas questões na especialidade. Com ou sem BE.

No Bloco de Esquerda a perceção, segundo fonte do partido aponta, é que o Governo está “interessado em dar um sinal ao PCP de que na especialidade tudo o que o PS aceitar dar é do PCP”. E acusa Governo de ter “inventado tópicos de negociação” e de estar a contabilizar como ganhos para o BE algumas matérias “apenas porque as considera de esquerda”.

A guerra está acesa, mas o que de tudo isto pode ainda resultar em alterações ao Orçamento do Estado e vai centrar grande parte do debate a partir desta terça-feira? Vamos por partes.

Novo apoio extraordinário. Os passos que ficaram aquém

Numa longa lista a que o Observador teve acesso por parte do Executivo, contam-se alterações pós-entrega do Orçamento, à condição de recursos no apoio extraordinário ao rendimento dos trabalhadores, nomeadamente a sua não aplicação a quem perca o subsídio de desemprego em 2021, que passam a receber o montante que recebiam antes de terem acesso ao subsídio até ao valor do limiar da pobreza. E a isenção também para aos trabalhadores independentes e sócios gerentes de empresas com atividade interdita por decisão do Governo ou de autoridade competente por causa da pandemia. Para os trabalhadores independentes, o Executivo escreveu ainda que se aproximou do BE ao permitir que o apoio não esteja limitado a 50% mas a 67% da quebra de rendimentos, “o que representa um aumento de aproximadamente 40% na prestação média”, garante.

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O Governo também reclama que aceitou, já depois de entregue o OE, alargar o tempo de aplicação do apoio para os trabalhadores independentes economicamente dependentes e para trabalhadores do serviço doméstico mensal. E ainda que quando a ponderação dos filhos para a condição de recursos prejudicar o acesso ao apoio, o abono de família até ao terceiro escalão é reforçado.

Mas vamos ao Bloco, nesta mesma matéria. O partido reclamou que a condição de recursos para acesso à prestação tivesse como referência a cobertura de todo o agregado familiar pelo limiar de pobreza, sem a habitual penalização de menores. E perante a reserva do Governo, contrapropôs que a casa morada de família saísse da condição de recursos e que os desempregados com filhos pudessem receber mais um mês de abono de família por semestre. Não teve seguimento, bem como as conversas sobre alterar o limiar mínimo da prestação e a ideia inicial do partido de aplicar o apoio a “todos os trabalhadores que perderam rendimento com a crise e não têm acesso ao subsídio de desemprego”. Vai voltar à carga na especialidade, garante o partido.

Saúde. Avanços mínimos e cedências que eram, afinal, promessas do Governo

Era outro pilar nestas negociações quando o BE chegou às reuniões com o Governo e foi até a área com que Catarina Martins acabou por justificar o voto contra do BE, no último domingo, criticando a falta de avanços nas negociações.  E o seu partido tinha um pesado caderno de encargos nesta matéria: queria mais vagas para especialidades médicas, autonomia das instituições do SNS para contratação para lugares de quadro vagos, criar a carreira de auxiliar médico de saúde, corrigir transição de carreira de enfermeiros e técnicos superiores de diagnóstico com contagem de tempo de serviço, o regime de dedicação plena para médicos e outras carreiras do SNS, um estatuto de risco e penosidade para profissionais de saúde e ainda a concretização de algumas medidas que vinham do Orçamento anterior — aliás, as críticas à execução desse Orçamento foram uma constante no partido nesta fase negocial — sobretudo ao nível de contratações para o SNS.

O Governo garante ter agido para confortar o BE ao estabelecer, agora na última semana, um calendário “mês a mês” para a contratação dos novos profissionais no próximo anos (são 4.200 previstos em termos líquidos) e que esses postos de trabalho vão “corresponder a tempo integral”.  Também reclama ter ido ao encontro do BE no aumento dos incentivos para que sejam ocupadas vagas em zonas carenciadas.

No Orçamento diz que ficou já inscrito um subsidio extraordinário de risco, à medida de uma contraproposta do BE depois de o Governo ter recusado criar todo um estatuto. E ainda diz que mais de duas mil das contratações para o SNS são contratos sem termo, dando resposta à crítica do BE à instabilidade contratual nesta área central. Mas a dada altura coloca nesta lista como cedência ao partido alguns dos seu próprios projetos (ainda que coincidam com desejos de toda a esquerda parlamentar), caso do início da construção do novo Hospital Central do Alentejo e o lançamento do concurso para Hospital de Proximidade do Seixal. São promessas antigas de António Costa que foram tendo sido empurradas de orçamento em orçamento.

Onde o copo ficou meio cheio, meio vazio, ou a seco

Fora estas matérias, o Governo prepara-se ainda para agitar como ganho da esquerda a moratória de dois anos para a caducidade da contratação coletiva, ainda que a intenção do BE (e também do PCP) seja acabar com ela de vez para os casos em que é decidida de forma unilateral. Aqui vão esgrimir argumentos sobre o meio caminho ou a metade do caminho feito. Bem como nas matérias relativas a incentivos para manter postos de trabalho, em que o BE pedia a proibição de despedimentos e o que conseguiu foi que as grandes empresas com lucros apenas sejam penalizadas nos benefícios fiscais (“ao investimento que não vai haver”, reclama o BE) e no acesso a garantias para linhas de crédito.

Em matéria de proteção de emprego, o BE só admite como ganho em toda a linha as limitações que ficaram concretizadas no Orçamento para as renovações de contrato no trabalho temporário. Passam de seis para três. Mas diz que o Governo foi inflexível em quase todas as matérias, nomeadamente a obrigatoriedade de contratos de trabalho com as plataformas de entregas, como a Uber ou a Glovo, o alargamento do período experimental ou a recuperação de 30 dias de compensação por ano de trabalho em caso de despedimento e na cessação de contrato a termo.

Por seu lado, o Governo nega a inflexibilidade, e diz que tentou ir ao encontro do BE, por exemplo, em matéria de proteção no período experimental, ao definir a compensação de dois dias por mês quando o contrato tenha tido mais de 120 dias e ainda a redução de 90 dias para que estes trabalhadores possam aceder ao subsídio de desemprego. Além de uma questão mais semântica que é retirar a definição do “período experimental” da lei, passando a usar o termo “pessoa à procura do primeiro emprego”.

Depois vem o caso do Novo Banco, em que o Governo diz que foi o mais longe que pode ao definir — ao contrário do que diz que era a sua intenção inicial — que nção haverá qualquer empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução. O BE atira que isto é o Estado a assumir o compromisso de transferência para o Novo Banco no OE 2021 e promete insistir nesta matéria, deixando nesta fase a parte da sua proposta em que defendia a capitalização direta do Novo Banco através dos bancos e não do Fundo de Resolução.

As próximas 12 horas ditarão o tom da guerra entre o Governo e o Bloco de Esquerda. No final, na primeira votação do OE 2021 que acontece esta quarta-feira, já se sabe que o BE votará contra. Mas ninguém sabe o que será daí para a frente, no longo processo de especialidade — a discussão e alteração da propostas artigo a artigo, alínea a alínea) que só fechará no final de novembro com nova votação. O que acontecerá aí será da responsabilidade do Governo, ameaça o Bloco de Esquerda. Entre o Governo, atira-se essa mesma responsabilidade para os bloquistas. Um nó (cego?) na velha “geringonça”.