Aos 27 anos, Bernardo Carreira acumula uma experiência internacional assinalável. No verão de 2018, deixou o emprego que tinha numa startup de telecomunicações, em Londres (entretanto, também já tinha morado nos Estados Unidos), e regressou à terra natal — Minde, no distrito de Santarém. Uma história que em nada se compara à que se viria a desenrolar a partir daí. “Despedi-me e vim para Portugal. Queria lançar um projeto próprio, mas não sabia exatamente o quê. Comecei a estudar o mercado, mas nem sequer sabia que queria fazer sapatos”, contextualiza o jovem empreendedor ao Observador.

Convenientemente aditivado, um jantar de amigos revelou ser o brainstorming perfeito. Fazer uns sapatos de canábis? A ideia, à partida mirabolante, era afinal promissora e exequível, só precisava de um empurrão. “Foi muito aleatório, mas de facto já tinha visto carteiras e malas feitas em cânhamo. Criámos uma campanha de crowdfunding e juntámos 250 mil dólares”, conta. A 8000Kicks (inicialmente lançada como DopeKicks) nasceria em maio de 2019.

Bernardo Carreira na fábrica que assegura parte da produção, em Felgueiras © Divulgação

“Mas nada disto seria possível sem a minha avó”, assinala de imediato. Maria Otília e os seus 50 anos de experiência em confeções foram imprescindíveis durante os primeiros testes. Mas primeiro, foi preciso encontrar os melhores fornecedores. Desde os anos 70 que a China trabalha esta fibra natural, mais ou menos a mesma altura em que Portugal deixou de trabalhá-la industrialmente, mas o processo foi moroso e prolongou-se por cerca de seis meses. Atualmente, a maior parte do tecido provém deste país asiático, embora a marca trabalhe também com fábricas em França e na Roménia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os testes foram sucessivos — primeiro à resistência dos materiais enviados pelos diferentes fornecedores, mais tarde na construção dos primeiros protótipos. E foi precisamente aí que a Maria Otília entrou em ação. “Ela, melhor do que ninguém, sabe o que é um bom e um mau tecido. Acompanhou todo o processo de prototipagem. Identificava o que estava a ser bem feito e o que tinha de voltar para trás”, recorda Bernardo. Na avó, o empresário encontrou o mais rigoroso controlo de qualidade, capaz de embaraçar o diretor de uma fábrica dentro do seu próprio gabinete, episódio que também relata.

O modelo The Explorer em preto © Divulgação

Tudo foi corrigido a tempo, até o design. Sem o aspeto artesanal da produção das primeiras oficinas, experiência após experiência, a marca chegou ao The Explorer, o primeiro e único modelo da 8000Kicks (disponível em bege e verde e em preto), de linhas minimais e contemporâneas. O cânhamo, que o responsável assegura ser a única fibra presente do tecido de que são feitos os ténis, não é só uma infindável ferramenta de marketing, mas sobretudo a garantia de calçado mais sustentável. “É um super material. É super resistente, cresce praticamente em todo o lado, dispensa o uso de pesticidas e inseticidas e precisa de cinco vezes menos água do que o algodão”, explica.

A marca orgulha-se ainda de produzir as “primeiras palmilhas do mundo feitas de cânhamo”, de compor as suas solas a partir de algas, tornando o produto final totalmente vegano, e de aplicar um acabamento nos seus ténis que os faz repelir a água. “Queremos mostrar que este é o melhor tecido que existe e isso acontece fazendo os melhores produtos. Se conseguirmos que o canábis se torne mainstream, perfeito, arranjamos outra ideia e montamos outra empresa”, remata Bernardo, que é também o CEO da 8000Kicks.

Maria Otília, a avó que ajudou a criar a 8000Kicks © Divulgação

Com os Estados Unidos como principal mercado (Portugal representa apenas 5% das vendas), o negócio continua a crescer, mesmo que a um ritmo mais lento em relação ao período pré-pandemia. O novo coronavírus obrigou a alterações na produção, que deixou de ser feita apenas em Portugal. Atualmente, está dividida entre Felgueiras e uma fábrica na China. “As fábricas em Portugal pararam, tivemos cinco meses sem produzir. Não podíamos voltar a arriscar”, justifica.

Para Maria Otília, o trabalho está longe de ter acabado. Os planos de expansão da marca passam por diversificar o produto, mantendo a matéria-prima, mas também a tipologia calçado. As máscaras foram uma exceção e também requereram o expertise da avó do fundador. Os planos para ter a 8000Kicks em lojas físicas ficou sem efeito perante a ameaça da Covid-19. É a partir do site que o The Explorer é vendido para todo o mundo. Custa cerca de 110 euros.