O mesmo jornal que de certa forma desencadeou o movimento #MeToo, após a publicação de um longo artigo onde detalhava várias acusações de conduta sexual inapropriada protagonizadas pelo produtor Harvey Weinstein, descreve agora um cenário idêntico no mundo dos vinhos. Ao The New York Times 21 mulheres contaram que foram assediadas, manipuladas ou agredidas sexualmente por homens com o título master sommelier. As testemunhas salientam que o abuso é um “problema contínuo” do qual os mais altos responsáveis estão cientes.

O termo master sommelier diz respeito ao título de vinhos mais prestigiante nos Estados Unidos da América, escreve o NYT. As pessoas que conseguem alcançar o muito trabalhoso e exigente patamar gozam instantaneamente de ordenados bem pagos e juntam-se aos nomes mais influentes da área. Desde 1997, ano em que o Court of Master Sommeliers Americas foi fundado (a instituição original surgiu em 1969, com a primeira examinação a acontecer no Reino Unido), apenas 155 pessoas conseguiram obter o título que exige anos de dedicação — dessas, 131 são homens.

A isso acresce que tanto esta organização com a spinoff GuildSomm (que também forma especialistas em vinho e cujas bases educacionais são úteis na obtenção do título master sommelier) viram a respetiva fama crescer exponencialmente após a estreia, em 2012, do documentário “Somm”, o qual provocou ainda uma vaga significativa de novos candidatos. Atualmente, mais de 12 mil pessoas são membros desta comunidade, incluindo muitas mulheres.

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Existem quatro níveis, do introdutório ao que concede o tão cobiçado título, sendo que a classificação do teste final é determinada por examinadores escolhidos entre os principais master sommeliers. Para a obtenção deste estatuto são precisas cartas de recomendação, acesso a vinhos dispendiosos de maneira a poder prová-los e viagens a diferentes regiões produtoras, fatores que dependem destes membros seniores.

O contexto é dado pelo próprio jornal para depois detalhar as várias acusações a que teve acesso: desde um master sommelier que fez avanços a pelos menos 15 candidatas, prometendo por vezes favores profissionais em troca de sexo, à estudante que conta que um destes profissionais pediu-lhe um par de cuecas com que se “aconchegar” e à mulher que revela que outro a violou em Nova Iorque findo um evento de vinhos. A jornalista dá ainda conta do termo de elevada conotação sexual “sommsucker” que é usado para descrever as mulheres que se envolvem com membros do Court of Master Sommeliers Americas (CMS-A).

Geoff Kruth, o fundador e até então presidente da GuildSomm, além de um dos formadores do CMS-A, é um dos nomes mencionados no artigo, sendo que 11 mulheres dizem ter sofrido de conduta sexual inapropriada às suas mãos. Kruth, que em 2017 esteve em Portugal para participar na wine summit Must – Fermenting Ideas, negou as acusações através de um advogado, defendeu que todas as relações sexuais foram consensuais e que não deu tratamento especial às mulheres com quem se envolveu sexualmente. Kruth, que surge ainda no documentário “Somm”, disponível na plataforma de streaming Netflix, demitiu-se na semana passada na sequência destas alegações.

Entre as acusações estão relatos de que Geoff Kruth apalpou algumas destas mulheres, coagiu-as a ter sexo, enviou um guia inapropriado de sexo oral através do Facebook e até recebeu uma das envolvidas no hotel onde estava hospedado totalmente despido.

Ao jornal já citado, o CMS-A diz esperar que os seus membros “mantenham os mais altos padrões de conduta profissional e integridade em todos os momentos” e que “investigou todas as acusações de conduta semelhante que foram trazidas à sua atenção”. Refere ainda, numa nota escrita, que já impôs várias sanções disciplinares. A verdade é que ainda no mês passado criou uma linha telefónica para reportar de forma anónima casos idênticos — antes não havia qualquer mecanismo a não ser denunciar diretamente ao conselho de direção, o qual muitas vezes incluía os homens alegadamente protagonistas de assédio sexual.

Uma porta-voz da CMS-A refere que já em 2017 Geoff Kruth recebeu uma carta de advertência, após surgirem duas queixas formais de conduta inapropriada, e que o mesmo foi banido de participar na programação e nos exames de nível mais elevado. Mas Kruth não é o único nome mencionado. Mais de uma dúzia de mulheres acusam também o cofundador do CMS-A Fred Dame de insinuação sexual e toques indesejados. O artigo dá ainda conta de alegações feitas contra mais membros desta organização e de outros master sommeliers. Várias mulheres admitem que por conta do assédio sexual à conta de instrutores, mentores ou outras figuras no mundo vinho desistiram do título de master sommelier.