Paul Celan e Ingeborg Bachmann, dois dos grandes poetas de língua alemã, do século XX não casaram, não tiveram filhos, não foram felizes para sempre. Talvez não tenham sido felizes nunca. Tiveram, no entanto, momentos de alegria, essa que os deuses nos oferecem de vez em quando. Quem ler a obra Tempo do Coração, a correspondência de cerca de 20 anos entre Celan e Bachmann, publicada agora pela Antígona, não espere alimentar com ela os seus devaneios românticos, eróticos, a sua fome de melodramas. Aqui não há nada disso.

Não estamos no território do Amante, de M.Duras, muito menos de Henry e June de Anais Nin, nem sequer de Santa Teresa d’Ávila ou as cartas de amor “ridículas” de Pessoa a Ofelinha. Nestas missivas de Paul e Ingeborg, trocadas entre Viena e Paris, Munique e Paris, nas papoilas da memória e nos poemas, continuamos a ouvir os bombardeamentos sobre as cidades, as deportações, os fuzilamentos, os vagões a correrem sobre os carris em direção aos campos de concentração. Seria possível que depois de Auschwitz, se pudesse amar de outra forma que não em silêncio?

Tempo do Coração, Antígona (PVP: 18 euros)

Pascal Quignard, em Vida Material, escreveu que o amor, “quanto mais silencioso, quanto maior a sua dissidência da linguagem mais arcaico se torna”. Talvez por isso estas cartas de amor nunca sejam ridículas, mesmo quando são frágeis, saudosas, inseguras, desesperadas, frustradas. Pois aqui o amor está longe do design que nos ensinaram os filmes e os romances e está mais próximo de uma coisa sem nome.Talvez não seja por acaso que o primeiro poema que Celan lhe dedica se chame No Egipto, evocando essa cultura milenar. Aqui o que há, talvez seja tão antigo, tão misterioso que ainda não tem nome. Afinal os nós e os laços que nos puxam uns para os outros são sempre um acaso tão inexplicável como irrepetível.

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Uma palavra — bem sabes:

um cadáver.

Vamos lavá-lo,

Vamos penteá-lo,

vamos virar-lhe os olhos

para o céu.”

[Paul Celan]

A consciência da impotência das palavras para dizerem o negro que habita o mais fundo de nós, o escuro, o mal, o que levou à Shoa, o que levou a Alemanha a criar uma máquina de matar é, em Celan, igual à impotência das palavras para dizerem o Bem. Nele, as palavras ditas são sempre um cadáver de qualquer coisa que já teve vida, mas que ao ser nomeada, morreu. Não se pode compreender estas cartas, sobretudo as do poeta judeu da Bucovina, sem perceber, como explica Yvette K. Centeno, no prefácio do livro Sete Rosas Mais Tarde (Cotovia), que em Paul Celan a luz nada ilumina e serve apenas para dar a ver a espessura das trevas.

Ele rejeita tudo o que aprendemos com Platão e depois com o Cristianismo, o Marxismo, o Capitalismo, etc; que de um lado estão as trevas identificadas com a ignorância, a escravidão e o Mal e do outro está a luz identificada com a sabedoria, a liberdade, o Bem e que o nosso caminho é sempre da trevas para a luz.  Para ele só há trevas, abismos escuros e fundos (no judaísmo, o Abismo é uma das imagens de Deus) dos quais nenhuma palavra nos salva, nenhuma palavra ilumina. Ele chegou a confessar que se arrependia de ter escrito A Fuga da Morte (o seu poema mais famoso, ainda hoje o mais conhecido e evocativo da Shoa), por se ter tornado uma obra tão lida. Sentia que tinha dito demais.

Composto por 127 cartas trocadas entre a primavera de 1948 e o verão de 1967, Tempo do Coração junta também as cartas trocadas entre Ingeborg e Gisèle Celan-Lestrange, (futura mulher de Celan), bem como as de Celan a Max Frisch  (futuro companheiro de Ingeborg). Esta correspondência a dois e depois a quatro demonstra a complexidade desta história, da relação entre os dois poetas, mas também, a preocupação e o afeto da parte de Ingeborg, Max e Gisele para com Celan. De certa forma, é ele o centro da vida destas pessoas, tal como é o centro de si mesmo, totalmente virado sobre a sua dor, cego para tudo o mais, não por egoísmo mas porque a sua profunda depressão o mantinha preso. A sua crescente debilidade emocional levou a uma união de esforços dos outro três para o ajudar. O que não adiantou muito porque, numa noite de 20 de abril de 1970, ele deixou-se levar pelas águas do Sena. Tinham passado apenas 50 anos desde o seu nascimento, no dia 23 de novembro de 1920, na cidade de Czernowitz, na Bukovina, que fazia parte do reino da Roménia e, atualmente, faz parte da Ucrânia. Chamaram-lhe Paul Pessakh Antschel, a partir do qual ele faz anagramático pseudónimo de Paul Celan.

Este ano assinala-se o centenário de uma existência estelar, um rápido caminho entre uma fulgurante energia poética e o ritual de enterro. Uma parte da sua poesia foi traduzida para português por Yvette Centeno e João Barrento e, recentemente, foi reeditada pela extinta Cotovia e existe ainda uma antologia na Relógio d’ Água. Os dois livros de poesia de Ingeborg Bachmann também estão traduzidos para português, por João Barrento, na editora Assírio & Alvim, bem como o seu intenso e corajoso livro de contos Trinta Anos (Relógio d’Água).

Leite negro da madrugada bebêmo-lo ao entardecer
bebêmo-lo ao meio-dia e pela manhã bebêmo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena-nos agora toquem para começar a dança (…)

[excerto de “Fuga da Morte”, Paul Celan, Note-se que aqui a palavra “fuga” é usada de acordo com o sentido musical do termo]

Paul e Ingeborg, um Amor Aprazado

Tempo Aprazado é o título do primeiro livro de poemas publicado por Ingeborg, em 1952, onde transparece a sua relação amorosa e poética com Celan, onde ela evoca a poesia dele numa tentativa de diálogo poético contra a quase mudez do poeta judeu. Uma viagem pela “neve escura” que era esse tempo dos amantes adiados, das primaveras e das papoilas onde não voltaram a comparecer embora acreditassem, durante 20 anos, ser possível um reencontro como o de 1948, quando se conheceram, em Viena e ele lhe enviou um molho de papoilas.

Ingeborg Bachmann e Paul Celan, em 1952, no encontro dos escritores de língua alemã Grupo47

Ela tinha 22 anos e era filha de um professor Nacional Socialista, estudante de filosofia, já politicamente muito consciente, já olhando horrorizada e culpabilizada para a racional máquina de matar que foi o Nacional Socialismo na Europa e haveria de escrever uma tese de doutoramento sobre o filósofo-nazi Martin Heidegger. Ele tinha 28 anos, era um judeu apátrida de língua alemã, que tinha passado por um campo de trabalho forçado na Roménia, libertado pelos soviéticos, em 1944, e cujos pais tinham sido deportados para um campo de concentração na Transnistria onde o pai morreu de tifo e a mãe foi fuzilada por exaustão.

O pai fora um advogado sionista que fizera questão que Paul estudasse numa escola hebraica e a aprendesse hebreu. Quando adolescente, esteve ligado a organizações juvenis judaicas, militou contra a Guerra Civil Espanhola e, em 1938 partiu para França para estudar medicina. Data desse ano o seu primeiro poema, intitulado “Dia da Mãe”,  mas também a trágica “noite de cristal” em Berlim. Depois disso, Celan decide regressar à Roménia onde se matricula no curso de Literatura e Línguas.

A poeta e escritora austríaca Ingeborg Bachmann, nos anos 60

Em 1941, quando as SS entram na Roménia, começaram a criação de guetos e as deportações. Celan é colocado num campo de trabalhos forçados, onde, ao fim do dia, traduz os sonetos de Shakespeare e escreve poesia. Só um ano depois saberá da morte dos pais. Depois de ser libertado ruma a Bucareste, onde trabalha num hospital psiquiátrico e se aproxima do grupo de poetas surrealistas romenos. Publica poemas em jornais e revistas sob vários pseudónimos. Em 1947, traduz para romeno a sua Fuga da Morte, que terá escrito entre 1944/45. Nesse mesmo ano parte para Viena, onde conhecerá Ingeborg e se tornam amantes, ele escreve-lhe o poema “No Egipto”, evocando uma memória milenar quebrada pela chegada de “uma estranha”. Este poema aparecerá citado, interpretado, cifrado e decifrado nas dezenas de cartas que os dois vão trocar ao longo dos anos:

No Egipto

Para Ingeborg

Dirás nos olhos da estranha: Sê água!

Procurarás, nos olhos da estranha, aquelas que sabes estarem na água.

Irás chamá-las para que saiam da água: Ruth, Noemi, Mirjam!

Irás enfeitá-las quando com a estranha te deitares.

Irás enfeitá-las com o cabelo-nuvem da estranha (…)”

[Paul Celan, 23 de maio de 1948 , excerto]

Podemos pressentir que foi uma paixão precipitada, primaveril, que nenhum dos dois imaginava que, naqueles dias estavam, a forjar um nó que só a morte desataria. Pouco depois desse encontro, Celan parte para Paris para se juntar a um grupo de intelectuais judeus e poder publicar e trabalhar. Já não estará em Viena quando é publicada a sua primeira coletânea de poesia, intitulada A Areia das Urnas. Percebe-se que a relação dos dois fica em aberto, não há promessas de fidelidade, só talvez de um reencontro em Paris. No Natal de 1948, Paul receberá a primeira carta de Ingeborg, onde ela manifesta surpresa por não saber que tinha saído um livro dele em Viena e diz-lhe:

Estou hoje a pensar como gosto de ti e como te sinto presente. Não quero deixar de te dizer isto — na altura, muitas vezes não o disse .

Logo que tenha tempo, posso ir aí por uns dias. Será que gostarias de me ver? (…)”

No final de janeiro, Celan responde:

Ingeborg, procura por um momento esquecer o meu silêncio, tão prolongado, tão persistente (…)

Não me faças, não o faças esperar!

Abraço-te.”

A carta seguinte, enviada por Ingeborg, data de abril de 1949. Há sempre um grande espaçamento temporal entre as missivas de ambos, o que contraria a urgência das suas palavras, especialmente de Ingeborg. Em geral, Celan é mais contido, escreve pouco, mas o que diz parece mais sério, mais comprometido. Enquanto Ingeborg é quase tagarela, faz imensas promessas, mas, como todos os que prometem, ela não as cumpre. Sabemos que no intervalo das cartas terão havido telefonemas, que talvez  expliquem porque é que há tanta coisa omitida e incompreensível nesta correspondência.

Estas 127 cartas são sobretudo um esforço tremendo de duas pessoas para manterem o laço que as une, contra a distância física e temporal, contra as circunstâncias terríveis do pós-Guerra na Europa: o desemprego, a falta de dinheiro, a falta de meios. Celan sente-se isolado e infeliz em Paris, onde trabalha sobretudo como tradutor (chega a traduzir sete poemas de Fernando Pessoa). Ingeborg espera por empregos e bolsas de estudo, viaja e também ela começa a escrever. Apesar da urgência de amor, apesar das memórias eróticas e dos poemas, os dois acumulam mais passado que futuro.

Paul Celan, em 1938, quando estudava medicina em França

Depois de um breve encontro de Paris, Celan e Ingeborg  só voltam a ver-se em 52, no encontro de escritores alemães, o Grupo47, (do qual fazia parte o futuro prémio Nóbel Günter Grass). Nesse encontro ele lê A Fuga da Morte, mas, no final, sente-se incompreendido e frustrado, não volta a participar nestes encontros. Dá-se um afastamento de Ingeborg e, no final desse ano, casa com a aristocrata francesa Gisèle Lestrange com quem virá a ter um filho.

Nessa reunião, Ingeborg também apresenta o seu primeiro livro de poemas O Tempo Aprazado, sobre o qual Celan não se dignou a emitir uma palavra. E, de facto, só quando se reencontram em 1957 e retomam o romance é que ele pareceu dar-se conta de que também ela era uma escritora, uma poeta e até com um considerável reconhecimento no meio literário austríaco. Em 1956, já tinha inclusive lançado um segundo livro de poemas Invocação da Ursa Maior, depois do qual abandona a poesia. Escreverá contos, um romance (Malina), muitos libretos para rádio. Aos poucos foi-se libertando da influencia de Celan. Entre este ano de 52 e o reencontro em 1957, os dois trocam apenas onze cartas. O casamento do poeta, o nascimento do filho, levam a que Ingeborg se procure afastar, mas nunca totalmente, nunca definitivamente.

 Desprende-te, coração, da árvore do tempo,

soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,

outrora abraçados pelo sol,

soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.

Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento

na fronte tisnada do deus do campo,

sob a camisa aperta o punho

já a ferida aberta (…)

[Ingeborg Bachmann, “Desprende-te Coração”]

Mas, se como Heidegger, Ingeborg acreditava na existência do Ser no tempo, Celan acreditava apenas no Nada. O tradutor  João Barrento escreve no prefácio ao livro da poeta austríaca, ela tem um universo também ele negativo, onde o Ser está isolado e, “nos limites do tempo tenta a comunicação impossível”. Como se  estivesse a descrever nesse prefácio estas cartas de amor e não os poemas, Barrento afirma sobre a poesia de Bachmann: “Trata-se de uma euforia comunicativa, que vive do próprio desespero de não conseguir instituir o verdadeiro diálogo”. De facto, é ela quem escreve mais e mais longas cartas. Por vezes não se atreve a enviá-las, outras vezes, num tour de force contra as exíguas respostas de Celan, ela manda todas as cartas que escreveu e não enviou no momento. Por seu turno, o poeta judeu, está sempre no limiar do silêncio, do desespero. Sobre este limiar Yvette Centeno considera:

“Com Paul Celan habitamos sempre o silêncio. O silêncio do tempo, o silencio do espaço entre as palavras. Cada palavra escolhida, vivida demoradamente, não pretendem exprimir mas fazer recuar até ao limite do indizível a imagem de um universo e de um homem abalados na própria raiz(…) o amor está morto na obra de Celan. Perdeu a sua qualidade redentora. O que dele fica são apenas fragmentos, imagens que não se ordenam.” [Sete Rosas Mais Tarde, prefácio]

A correspondência de Tempo do Coração coloca-nos muitas e fundas questões sobre o que é o amor, o que o mantém, o que o destrói. É um facto que Ingeborg nunca pareceu disposta a abandonar a sua vida, os seus projetos, para ir a correr para Paris atrás de Paul, como ele talvez esperasse. Apesar de, eventualmente, ter devaneios sobre isso. Nestas cartas, o que ressalta e o que parece uni-los é a cumplicidade no sofrimento. Talvez a mais perversa, mas também a mais forte forma de cumplicidade.

Em 1957, reencontram-se num evento literário em, Wuppertal, na Alemanha. E, depois de cinco anos sem saberem o que esperar um do outro, reacendem a paixão. Passam dias juntos e seguem depois para Colónia. Evocando o primeiro poema que lhe escreveu “No Egipto”, o poeta escreve-lhe: “Sempre que o leio vejo-te a entrar neste poema: tu és o fundamento da vida, também és e serás sempre, a justificação do meu falar.” Ao longo do ano seguinte é Celan quem parece mais determinado em assumir uma relação definitiva, como ele próprio dirá; uma relação “para a vida”. Torna-se um apaixonado prolixo, ressente-se da espera das respostas e numa carta pergunta: “Quem sou eu para ti, depois de tantos anos? Um fantasma…”. Efetivamente, em 1958, Ingeborg assume uma relação amorosa com Max Frisch. Não sabemos como Celan reagiu a isto, porque nenhuma carta o menciona.

Nesses anos dá-se mais um abalo na vida do Paul. A viúva do poeta expressionista alemão Yann Goll acusa-o de ter plagiado poemas do marido. O caso arrasta-se e Paul afunda-se ainda mais na depressão. Espera dos escritores e amigos uma reação pública em sua defesa, que não vem. Considera tudo isso mais uma manifestação de anti-semitismo e aos poucos vai-se afastando de toda a gente, recusando toda a vida social.

A muito bela esposa, Gisèle Lestrange, personagem quase anónima nesta história de dois poetas famosos, é uma figura que não devemos deixar passar despercebida. Não só aceitou a relação ambígua de Celan com Bachmann, como é a ela que pede ajuda quando sente que o poeta está cada vez mais mentalmente deprimido e ela teme pela sua vida. O seu desespero é comovente e denota um amor talvez mais profundo, certamente mais trágico, que o de Ingeborg. Também Max Frisch escreverá ao poeta sobre este caso e tenta animá-lo, mas Celan já desistiu. Nem mesmo o facto de lhe ser atribuído o prestigiado prémio de literatura alemã, o Büchner, o ajuda a resolver o caso Goll. É na receção desse prémio que ele profere o famoso discurso sobre a poesia como uma garrafa deitada ao mar, que está também publicado em português na Cotovia.

“Sete Rosas Mais Tarde” é um dos três livros de Paul Celan traduzidos para português. Foi recentemente reeditado pela Cotovia.

Nos anos seguintes ainda se encontrarão mais algumas vezes, terão várias conversas telefónicas a que as cartas aludem. Em Setembro de 1961,  Ingeborg escreve-lhe uma longa e dura carta, que não chega a enviar, mas onde se mostra cansada do negrume de Celan, da forma como ele se entrega ao desespero, do egoísmo dessa entrega, do egoísmo da sua obstinada e intangível solidão: “Muitas vezes sinto uma imensa amargura quando penso em ti e, por muitas vezes, não me perdoo por não te odiar (…)”. Percebemos, pela missiva seguinte de Ingeborg a Celan, ainda em 61, que se avolumaram as calúnias sobre ele e os mal-entendidos entre ambos. Ela escreve-lhe uma terceira carta, mas ele não responde. Só em 1963 se volta a  dirigir-lhe mas pede-lhe, como sempre, que ela lhe escreva “só umas linhas”. Ingeborg fica em silêncio. Em 1967 a última carta é de Celan a agradecer-lhe o por ela o ter recomendado  a uma editora alemã para traduzir Anna Akhmatova. Ela não responde. Pelo menos não com palavras.

Na fonte dos teus olhos

vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.

Na fonte dos teus olhos

o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração

que andou entre os homens, arranco

do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.

Só quando sou falso sou fiel

Só quando sou tu sou eu.

Na fonte dos teus olhos

ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:

separámo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos

um enforcado estrangula o baraço.

[Paul Celan, “Elogio da Distância”]

Alguns estudiosos da obra e da vida de Celan apontam um aprofundamento da doença mental do poeta, com crises paranoicas e delírios persecutórios. A verdade é que ele nunca ultrapassou o caso Goll, como nunca ultrapassou o Holocausto, a morte dos pais. Embora tivesse abandonado o judaísmo nos anos 60, depois de traduzir o poeta judeu russo, Ossip Mandelstam, começa a ler o filósofo judeu Gershom Scholem e segundo Yvette Centeno terá retomado o estudo do judaísmo, cujos símbolos, afinal, nunca deixaram de ser uma das grandes marcas da sua poesia. Aquilo que faz dela não uma experiência individual, mas coletiva.

Presume-se que no dia 20 de abril de 1970, o poeta tenha enfim dado o grande sim à morte, nas águas do rio Sena. Já não era um judeu desconhecido, mas aquele que ajudou todos os mortos a erguerem-se das cinzas e cantarem a morte. Três anos mais tarde, em outubro, de 1973, deflagra um, nunca explicado, incêndio na casa de Ingeborg, em Roma. Ela morrerá três semanas depois em consequência das queimaduras. Tinha apenas 44 anos.

Paul Celan, um poeta para o século XXI?

No próximo dia 23 de novembro, assinala-se o centenário de Paul Celan. Para muitos a sua poesia permanece ilegível, outros acham que podem imitá-lo e fazer carreira disso. No mundo cresce o anti-semitismo. A palavra perdeu de tal maneira a sua força que não importa se o que diz é verdade ou mentira. Perguntamos, à também poeta de origem judia, Yvette K.Centeno, se considerava que ele ia sobreviver ao século XXI:

Eu diria que é imperioso [ler Celan]. Mas é preciso gostar de poesia, da verdadeira, genuína, despida até ao osso. Há entre nós muito gongorismo superficial, rápido, vaidoso e será que esses egos inchados gostarão ou escolherão para ler e depurar as suas almas, os seus sentidos, o seu conhecimento da grande História europeia do século XX, uma obra de Celan? Conhecendo a sua biografia, o ter sofrido na pele o horror do Holocausto, adivinhar o destino dos pais, e sobreviver enquanto foi possível com as imagens que para sempre o marcaram. O imaginário que se descobre na sua poesia é o de uma língua “outra” em que só ele poderia ter escrito, e poucos entenderam…por isso se atirou ao Sena, nunca chegou a ser feliz na grande cidade das Luzes (onde havia tanto anti-semitismo).”

É certo que se tornou um poeta de culto, essencial para compreender o século XX, que hoje muitos procuram ver na face mais hermética da sua poesia uma forma de diálogo e uma busca do Outro. O que também é certo é que, como qualquer grande arte, ela deixa mais perguntas que respostas. Em Celan encontramos claramente  uma ideia veiculada por Filomena Molder sobre o também escritor judeu Hermann Broch; de que o “conhecimento da morte, a morte torna-se a verdadeira fonte de infinito”. E, de facto, Paul conheceu muito cedo a morte e toda a sua linguagem parece querer partilhar esse conhecimento, chorar esse conhecimento, lamber essa ferida que não vai sarar nunca.

Poeta modernista, até no sentido em que modernismo e hermetismo têm em comum: “a paixão pela descoberta, a experimentação agitada ou silenciosa da alma” (Centeno), nele o diálogo como o outro é sempre e só o “dialogo como o outro-eu”. Ele nunca deixa de estar só. E, ao contrário de muitos artistas judeus que passaram a experiência dos campos de concentração ou de pogroms, Celan não tenta fazer um ajuste de contas com a História, ele carrega sozinho toda uma culpa pelo que aconteceu, ele pede perdão às vítimas e tenta entender os carrascos. E quando o filósofo Theodor Adorno pergunta se é possível a poesia depois de Auschwitz, ele dirá e provará que sim. E escrevê-la-à sempre em alemão (a língua dos mestres da morte) e não em romeno ou hebraico. Mas a sua poesia é também “uma viagem do verbo para o silêncio (…) porque o verbo se retrai quando a experiência vivida é indizível”, escreve Centeno. E o sofrimento é indizível.

“O Tempo Aprazado” reúne os dois únicos livros de poesia escritos por Ingeborg Bachmann (Assírio & Alvim)

Tornou-se um lugar comum dizer que Celan escreve no “limiar da linguagem”, ou pelo menos de uma linguagem estendível como tal. No entanto, não nos podemos esquecer que para o povo do deserto não há limiares ou infinitos, porque isso já pressupõe a existência do finito. O que existe é o vazio, mais precisamente “o vazio fecundo”, como explica o teólogo e rabi Marc-Alain Ouaknin. Para os judeus, o vazio é onde tudo nasce, onde tudo se gera inclusive o tempo, a palavra, o pensamento, a interrogação, que gera novos vazios , novas palavras.

Ora é desse vazio que vem o mais profundo silêncio e o mais profundo da palavra. A poesia de Paul Celan não está no limite, ela nasce e labora, e transforma-se nesse vazio fecundo, num nada aberto a todas as possibilidades, ainda que essas possibilidades sejam apenas, para ele, o sofrimento, a culpa, a morte. No seu último poema surge pela primeira vez a palavra “Sabbath”, precisamente o dia do jejum, da limpeza, do vazio que poderá então voltar a ser preenchido de novas possibilidades. Ele morreu para poder renascer limpo e cheio de novas possibilidades.

 Os vinhateiros escavam

o relógio das horas sombrias

cada vez mais fundo,

tu lês

o Invisível

desafia o vento,

tu lês,

Os Abertos trazem

a pedra atrás dos olhos,

ela te reconhecerá

no dia do Sabbath”

[Paul Celan, “Vinhateiros”]