Não é a obra mais densa que já vos foi dada contemplar, mas também não é – de todo – a mais inócua. Qualquer coisa em “Californication” torna-a superficialmente profunda (algo diferente de “profundamente superficial”), talvez porque não haja outra forma de abordar estes assuntos numa série que se quer mainstream que não esta: surfando-os.
Sim. Agora que o mundo se prepara para fechar outra vez e os dias fogem para debaixo das noites mais longas do ano, as sete temporadas da série de Tom Kapinos originalmente exibida de 2007 a 2014 na Showtime e, entre nós, na RTP2 e na FX, estão integralmente disponíveis no catálogo da HBO Portugal. Não salva tudo, mas já nos dá um plano para os primeiros 15 dias deste Outono circunscrito: acampar no sofá e ver ou rever, de fio a pavio, a série que provou o que parecia impossível – que David Duchovny era mais do que Fox Mulder. (Digo isto como um sonho delirante. Não sei exatamente quem vos iria pagar para ficarem 15 dias no sofá a ver televisão).
“Californication” acompanha a migração de um romancista nova-iorquino de sucesso para a solarenga Califórnia, quando a sua relação colapsa e o bloqueio de escritor o toma de assalto. Como dizia um dos trailers da série, Hank Moody é colocado perante a mais difícil das reescritas: a da sua própria vida. Mas Hank, como Oscar Wilde, resiste a tudo, menos a uma tentação. E então, atraiçoa a escrita com o sexo, o sexo com o amor, o amor com o medo. E percebemo-lo – oh, como o percebemos. Temos é Santo António dos Cavaleiros pela janela em vez de Los Angeles. Mas percebemos, Hank. O escritor é apenas um fraco com mais vocabulário disponível.
[o trailer da primeira temporada de “Californication”:]
Hank colhe inspiração, de forma mais ou menos assumida, em Hank Chinasky, alter-ego de Charles Bukowsky. Mas, onde Bukowsky é negro, frio, frequentemente cruel e desesperançado, “Californication” é entretenimento para nos fazer querer virar a página, ou neste caso, ver o episódio seguinte. É demasiado solar para a descoroçoada solidão do escritor, para a angústia da frustração, para o ego atormentado do falhado. Mas essa é, muito provavelmente, a única forma de servir estes assuntos ao grande público e, ao mesmo tempo, contentar até o pequeno nicho intelectual que, assim, pode sonhar que, um dia, talvez também possa frequentar as mesmas mansões, as mesmas festas, as mesmas louras que Moody.
Porque, no fundo, a maioria dos escritores é tão depravada como Moody; não tem é os meios. E independentemente de onde acontece, “Californication” capta acertadamente outra coisa: que a maior parte da vida de um escritor consiste nessa excruciante etapa de passar o dia a não-escrever.
Para além da surpreendente transformação de Duchovny do outrora alienado, seríssimo e discreto investigador de assuntos paranormais do FBI em “X-Files”, no carnal, mundano, cínico e sedutor escritor-ao-sol de “Californication”, a série tem alguns dos seus maiores trunfos no leque de restantes personagens, excelentes secundários no elenco principal e algumas formidáveis personagens entre o elenco recorrente. Madeleine Martin enquanto Becca, a filha adolescente de Hank, que vemos crescer de temporada para temporada; o maravilhoso Evan Handler enquanto Charlie Runkle, agente e melhor amigo do protagonista (quem vê nunca esquecerá, por mais anos que viva, a incursão do pequeno Charlie pelo cinema de adultos, no porno artístico “Vaginatown”); Pamela Adlon, no papel da adicta mulher, ex-mulher e depois mulher de novo de Charlie; Callum Keith Rennie, o carismático Lew Ashby, produtor e parceiro de Hank no crime que marca toda a segunda temporada; ou RZA, o rapper Samurai Apocalipse, que domina a quinta.
Fora estes, há ainda que contar com aparições de muita gente célebre ao longo da descida destes sete círculos da perdição de Hank Moody: Rob Lowe, Michael Imperioli, Carla Gugino, Heather Graham, Kathleen Turner, Amber Heard, Peter Fonda, ou as estrelas rock Tommy Lee, Zakk Wylde, Marilyn Manson e Sebastian Bach, entre outros.
“Californication” tem ainda a inteligência de servir o seu drama sob a forma de “half-hour show”, minutagem habitualmente reservada à comédia. Também por isso convida tanto ao binge-watching. Mas, se quiser ir saltando episódios ou mesmo temporadas inteiras, pode fazê-lo. O enredo é acessível a partir de qualquer entrada, contando que retenha uma coordenada: a única informação que importa é perceber em que ponto está Hank na relação com Karen (Natascha McElhone), a ex-mulher.
Porque, no fundo, “Californication” é um relationship drama, uma série sobre relações, para homens heterossexuais (porém, “friendly” para todos os outros). Uma forma de trazer o sol da Califórnia para estes dias escuros, fechados em apartamentos. A velha trilogia do sexo, das drogas e do rock’n’rol, servida sem culpa.
Alexandre Borges é escritor e argumentista