Estruturas representativas dos trabalhadores lamentam que a proposta do Governo para o estatuto dos profissionais da Cultura referente aos regimes contributivos, apresentada esta quarta-feira em reunião, deixe de fora várias especificidades do setor.

Esta quarta-feira à tarde decorreu, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, uma nova reunião do grupo de trabalho responsável pela elaboração do Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, na qual participaram entidades representativas do setor, entre as quais o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) e a Plateia — Associação de Profissionais das Artes Cénicas.

Na reunião, o Governo apresentou a parte do estatuto que diz respeito aos regimes contributivos e a ministra da Cultura, Graça Fonseca, em declarações à Lusa, considerou que a proposta apresentada, que vai ser “objeto de trabalho mais técnico”, “tem potencial” para responder à “equação [sobre a] flexibilidade artística”.

Para o Cena-STE, o que foi apresentado esta quarta-feira”aproxima-se um bocadinho do modelo belga em alguns aspetos”. “Mas continua a ficar de fora a coisa fundamental que é a contagem do tempo de serviço no setor. Como é que os trabalhadores, neste setor com tantas especificidades, são considerados, como é considerado o seu trabalho, como são consideradas até as questões físicas”, disse o dirigente sindical Rui Galveias, em declarações à agência Lusa, no final da reunião.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Rui Galveias deu como exemplo um profissional do circo, com cerca de 50 anos, que esteve presente na reunião de esta quarta-feira, cuja carreira como trapezista já terminou, mas que só pode reformar-se quando tiver 67 anos. “É um bom exemplo de como ainda falta muita coisa naquele documento”, afirmou, acrescentando que o mesmo acontece no caso dos bailarinos.

Também a presidente da direção da Plateia, Amarílis Felizes, referiu falhas na proposta em relação à contagem do tempo de serviço.

Continua-se a pensar muito num sistema mês a mês, quando sabemos que há profissionais, tanto trabalhadores por conta de outrem como trabalhadores independentes, que trabalham ao dia, à hora, cinco dias aqui, cinco dias depois. Isso parece que ainda não está claro e não está equacionada uma forma de prever isto. Não sabemos como é que se vai contar de facto o tempo de trabalho para o acesso ao subsídio de desemprego, que é o essencial, afirmou.

Lembrando que “a ideia do estatuto seria para responder a especificidades do trabalho na Cultura”, Amarílis Felizes lamentou que “as hipóteses pareçam que são para que o trabalho na Cultura se adapte ao estatuto, e não que o estatuto se adapte ao trabalho na Cultura”. Para a dirigente da Plateia, “as ideias [já apresentadas pelo Governo às estruturas representativas do setor] são muito gerais ainda”.

Rui Galveias corrobora: “Naquilo que foi apresentado até agora, 80% do que lá está é o Código de Trabalho”. “Saudamos isso porque sempre entendemos que uma grande parte dos problemas se resolvem com o Código de Trabalho. Depois há outras medidas, umas ‘mais ou menos’, algum material interessante do ponto de vista da carreira contributiva dos trabalhadores independentes. Mas depois há ali coisas que são ‘buracos’ que se podem transformar em grandes problemas e manutenção da precariedade. Essa é a parte que falta combater e que o estatuto não combate”, disse o dirigente sindical.

A preocupação é partilhada por Amarílis Felizes: “O Governo elenca o que já existe no Código de Trabalho e na lei 4/2008, uma lei específica para os trabalhadores do espetáculo, mas, não se propõe a fazer nada para que aquilo que não era cumprido — porque a lei laboral não é cumprida no setor, o falso recibo verde e o falso ‘outsourcing’ são completamente generalizados — passe a ser cumprido”.

“Nada é dito sobre como é que a lei, que não é cumprida, vai passar a ser cumprida, e isso é que nós achamos que é importante responder. A sensação é cada vez mais que, se não se criam estes mecanismos, se a proteção social não vai ser de facto forte, é muito provável que continue tudo no papel”, disse.

Rui Galveias está convicto de que “ainda falta muito trabalho”. Mas, apesar das preocupações, destaca que “pelo menos agora trabalha-se com conteúdos, uma coisa que demorou demasiado tempo a acontecer”.

Amarílis Felizes considera positivo o Governo dizer que “tudo isto está aberto para ser discutido” com as estruturas representativas do setor, mas afirma que, “ao fim de seis meses, as respostas serem tão vagas, faz parecer que não há uma resposta efetiva para mudar as coisas”.

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, também em declarações à Lusa, no final da reunião, confirmou que esta quarta-feira foi apresentada “a parte dos regimes contributivos”. A ministra salientou que esta parte “compatibiliza o que é a flexibilidade artística com a cobertura universal” da Segurança Social.

“Aquilo que hoje apresentámos foi uma medida de introduzir a possibilidade de retenção na fonte, de descontos para a segurança social para prestadores de serviços. Da mesma maneira como pode ser feita retenção na fonte para efeitos fiscais, a possibilidade de ser feita retenção na fonte para a Segurança Social, este foi um dos pontos principais que hoje discutimos, e agora vai ser objeto de trabalho mais técnico”, explicou.

Graça Fonseca considera que a proposta  apresentada esta quarta-feira “tem potencial para dar resposta a esta equação flexibilidade artística não sinónimo de precariedade social”.

“Há aqui o principio da cobertura universal, este é um dos princípios estruturantes deste ‘terceiro módulo’ [do estatuto], sejam prestadores de serviço, sejam prestadores por conta de outrem. É este o caminho que agora faremos”, afirmou.

À reunião de esta quarta-feira, segundo a ministra, “seguem-se 12 reuniões com trabalho mais detalhado, mais técnico com cada uma das entidades” que fazem parte do grupo de trabalho. As reuniões do grupo de trabalho para criação do estatuto, que envolvem representantes dos ministérios da Cultura, do Trabalho e da Segurança Social e das Finanças, começaram no início de junho, tendo também contado com a participação de organismos públicos, associações e sindicatos. A reunião de esta quarta-feira foi a “quarta em plenário”. E, nas três anteriores, recordou Graça Fonseca, têm sido discutidas “diferentes componentes deste diferente estatuto”.

A elaboração de um estatuto para o trabalhador da Cultura, que tenha em conta a sua especificidade laboral e lhe permita aceder a medidas de proteção social, é há muito reivindicada pelos profissionais das áreas artísticas.

Em maio passado – já em plena paralisação do setor, devido à pandemia da Covid-19 -, Graça Fonseca comprometeu-se publicamente a ter o estatuto laboral dos trabalhadores – comummente descrito como “estatuto do intermitente” – até ao final do ano. Entretanto, reiterou esse compromisso por diversas vezes.

A autorização para a criação do estatuto, incluída na versão preliminar do Orçamento do Estado 2021 (OE2021), consiste, entre outros, em “rever e atualizar o regime do registo dos profissionais da área da cultura, contendo regras quanto à sua realização, finalidades e benefícios”; “definir as modalidades de contrato de trabalho, incluindo o contrato por tempo indeterminado, o contrato a termo resolutivo, o contrato de trabalho de muito curta duração, o contrato de trabalho intermitente e o contrato de trabalho com pluralidade de trabalhadores ou empregadores, bem como o regime que lhes é aplicável”; “criar uma presunção de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem características que apontem para a existência de subordinação jurídica“; e “definir regras de forma quanto à celebração de contratos de trabalho”.

Além disso, prevê também “definir o regime contributivo e de segurança social aplicável aos profissionais da área da cultura, tendo em vista a sua proteção na eventualidade de doença, parentalidade, doenças profissionais, invalidez, velhice e morte, garantidas pelo regime de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem e trabalhadores independentes, e a sua proteção na eventualidade de desemprego, garantida pelo regime jurídico da proteção social na eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem”.

A autorização “tem a duração do ano económico a que respeita a presente lei”. Quer isto dizer que o estatuto tem de estar criado até ao final de 2021. No projeto de proposta de lei das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021, aprovado em setembro em Conselho de Ministros, já se lia que o estatuto dos profissionais da área da Cultura “será revisto e implementado” em 2021.