O Governo tem feito um trabalho “meritório” mas está demasiado “confinado” à questão da pandemia e não está a ouvir todos os setores e áreas da sociedade. Quem o disse foi Carlos César, presidente do PS, que, num tom pouco habitual, deixou recados, avisos e “recomendações” a António Costa na intervenção que fez, à porta fechada, na reunião da Comissão Nacional do PS, no passado sábado.

Segundo apurou o Observador junto de fontes presentes na reunião, os avisos de Carlos César foram ao ponto de o presidente do PS antever o pior: se as eleições fossem hoje, o PS não teria “sucesso eleitoral”. Isto não é o mesmo do que dizer que o PS não ganharia as eleições, mas sim que o PS poderia não ser chamado a governar, caso o bloco da direita fosse mais bem sucedido. A última sondagem da Intercampus, dá a direita (com o Chega) a ultrapassar o PS nas intenções de voto, ainda que não ultrapasse a velha geringonça (PS + BE + PCP) que, junta, somaria 54,2% das intenções de voto. Ou mais ainda, com o PAN.

“O nosso Governo tem feito um trabalho que não pode deixar de ser considerado meritório, mas essa pode não ser razão suficiente para termos sucesso eleitoral” se as eleições fossem hoje, disse Carlos César perante os comissários nacionais do PS, numa reunião que decorreu no sábado na sala do Centro da Esquerda, no Largo do Rato, em Lisboa, e que foi transmitida em formato digital para os membros da Comissão Nacional espalhados pelo país.

No final da reunião, que serviu sobretudo para o partido discutir o tema das presidenciais, António Costa falou aos jornalistas, com Carlos César ao lado, para criticar duramente o PSD por ter feito um acordo com o Chega nos Açores para ter maioria para governar no arquipélago. O tema tinha sido referido por Carlos César na sua intervenção, depois de ter deixado avisos duros ao Governo — com António Costa ao lado, a ouvir — numa altura em que os partidos, as autarquias e os governos enfrentam “tempos difíceis para se ter sucesso” ou para se “medir o sucesso”.

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Foi nesse contexto que Carlos César, ao que o Observador apurou, quis deixar uma nota de “preocupação” pela forma como o Governo tem agido em função da pandemia. Primeiro, César afirmou que o Governo devia abrir o diálogo com as instituições implicadas na pandemia, ouvindo mais as várias entidades e, sobretudo, agindo em conformidade com esse diálogo. César não especificou que instituições e entidades são essas mas há uma em particular que lhe pode ser mais cara: os governos regionais.

Depois, uma segunda “recomendação”: o Governo não deve paralisar perante a pandemia e esquecer o resto, ficando “confinado” a este tema. “Este governo não pode ser confinado a uma estrutura de políticas de saúde”, disse Carlos César, à porta fechada, deixando claro que são muitos os “desafios globais” com que os governos se confrontam e que “não se resumem à crise pandémica”.

Ou seja, por mais importante que seja a crise da pandemia, e sobre a qual o Governo deve ouvir mais as várias entidades implicadas, Costa não pode esquecer as outras dimensões da sociedade que não estão diretamente associadas à pandemia nem às suas consequências mais imediatas.

Foi aí que o presidente do PS lembrou outra batalha que aí vem e que o Governo não pode esquecer: as autárquicas. Segundo apurou o Observador, Carlos César apelou ao Governo de Costa que, mantendo a sua independência e separação de poderes institucional, “ajudasse” o partido, incluindo os seus autarcas, na maior batalha eleitoral que o PS vai travar no futuro próximo. Certo é que as regionais nos Açores e as autárquicas sempre foram entendidas no PS como as duas eleições mais importantes para o partido neste ciclo eleitoral que agora se iniciou — com as presidenciais a ficarem de fora desta equação, uma vez que o PS decidiu não dar apoio direto a nenhum dos candidatos, fazendo aprovar uma moção onde o partido faz uma “avaliação positiva” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa.

As regionais dos Açores já lá vão, e não podiam ter corrido pior ao PS, que perdeu a maioria absoluta, teve o pior resultado desde 1996 e não vai governar — daí que César lembre as autárquicas. O aviso parece claro: que Costa não faça aos autarcas socialistas o mesmo que fez a Vasco Cordeiro, nos Açores, já que o secretário-geral socialista e primeiro-ministro não marcou presença nem se envolveu na campanha regional, tendo apenas aparecido na noite eleitoral a dar a cara pela meia-vitória (ou meia-derrota).

Avisos duros, sobretudo porque vieram de um peso pesado como Carlos César, braço direito de António Costa em tantas ocasiões. Mas não foram os únicos. Numa reunião sobretudo centrada no tema das eleições presidenciais, António Costa ouviu também o seu ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, criticar a direção socialista pela forma como geriu o processo da presidenciais e decretar o seu apoio à candidatura de Ana Gomes.

A ex-eurodeputada socialista não é hostilizada na moção aprovada pela direção do partido, que até faz referências positivas à candidatura desta “distinta militante” do PS, mas é colocada no mesmo leque das restantes candidaturas democráticas (que não são referidas nominalmente mas que são as candidaturas de Marisa Matias e de João Ferreira). Só a proto-candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa é que merece parágrafos próprios, com o PS a sublinhar os aspetos positivos do seu mandato e a boa cooperação institucional entre Belém e São Bento — que deve ser valorizada. Marcelo saiu, assim, da reunião do PS como o candidato oficioso da cúpula do partido, o que não agradou a toda a gente.

Presidenciais aumentam divisões num PS a pensar no futuro