Já depois de o marido, o diplomata António Franco, ter morrido, em julho, Ana Gomes encontrou “um papelinho escrito por ele com os nomes de todas as pessoas que tinham declarado publicamente que me apoiavam”. Antes de morrer, o diplomata, com quem a socialista viveu 37 anos, pediu-lhe para não deixar condicionar a sua candidatura pela sua doença (cancro no fígado) e essa foi uma conversa decisiva para Ana Gomes, como a carta de um jovem de 18 anos, de Fânzeres, e, claro as palavras pró-Marcelo do líder do seu partido na Autoeuropa. “Ai é? O PS não tem candidato? Se calhar vai ter, se calhar vou candidatar-me!”.

A história da decisão da candidata presidencial que divide o PS  e muitas outras das suas carreiras política e diplomata estão contadas na primeira pessoa, em mais de 20 horas de entrevista conduzidas pelo jornalista João Pedro Henriques, no livro “Ana Gomes. A vida e o mundo”. A socialista revela histórias dos corredores políticos, mas também diplomáticos, com intrigas, denúncias falsas, o dia em que processou o ministro dos Negócios Estrangeiro João Deus Pinheiro, a zanga e as pazes com Jorge Sampaio, o MRPP, a mudança de posição de Portugal face a Timor (foi depois chefe da missão diplomática portuguesa na Indonésia durante o processo de independência de Timor-Leste), o desafio constante a Durão Barroso e também a José Sócrates e o seu MNE Luís Amado por causa dos voos da CIA, quando foi eurodeputada.

Capa do livro editado pela Palimpsesto

A longa conversa que será publicada na próxima semana, num livro editado pela Palimpsesto, começou no início de agosto, ainda Ana Gomes não tinha decidido o que fazer em relação a Belém, apesar de o seu nome já circular como uma possibilidade forte defendida até por insuspeitos, como Francisco Assis, no PS.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sabia que não contaria com o apoio do líder António Costa. Apesar da relação “cordial”, Ana Gomes desconfia que o primeiro-ministro não lhe perdoou o apoio a António José Seguro na disputa fratricida do PS em 2014. Aos amigos que a desafiavam disse sempre: “Esqueçam, até porque o Costa jamais alinhará nisso.” Mas depois assume: “Quando ele vai à Autoeuropa e diz aquilo, fiquei irritada e disse: ‘Ai é? O PS não tem candidato? Se calhar vai ter, se calhar vou candidatar-me!’. E depois houve a carta do jovem Pedro Limões que a sensibilizou. Dizia-lhe que ela “é parte da solução, para nós jovens, para nos dar futuro.” “Achei que não podia desertar”. E avançou, sem o apoio oficial do partido, como se viu no último sábado.

Só não fala muito de Marcelo Rebelo de Sousa, chega até a desviar o assunto quando, por exemplo, é questionada como era ele como professor, em 1972, na Faculdade de Direito, que Ana Gomes frequentou. Era dos que se acobardava ou dos que expulsavam da sala os “gorilas”, vigilantes do regime? “Isso não me lembro”, responde. Mas não coloca Marcelo no lote de “professores muito abertos aos estudantes anti-regime”, junto de Miguel Galvão Telles e o Luís Silveira, mas sim no grupo dos “outros simpáticos mas alinhados com o regime”. Fora, no entanto, do conjunto de “professores que eram totalmente identificados com o regime, como o Pedro Soares Martinez, o diretor da faculdade, de quem aliás o Marcelo era assistente”, detalha.

Costa falhou ao não promover “auto-análise” no PS para evitar um novo Sócrates

Na entrevista de 277 páginas, Ana Gomes analisa o atual PS, o liderado por António Costa que apesar de não ver “de maneira nenhuma como um sujeito venal”, considera que como “habilíssimo negociador”, por vezes “perde-se no deleite da negociação e faz-se a negociação por negociar”. E, sobretudo, critica por não ter posto o PS a fazer a “auto-análise indispensável para se fortalecer e para não voltar a cair noutra” como José Sócrates.

Para Ana Gomes, “é claro que o PS foi instrumentalizado por um indivíduo de baixa moral, para os seus objetivos de poder pessoal e para seu benefício pessoal, embora também tenha deixado obra importante para o povo”. E defende que Costa devia ter promovido um congresso ou uma reunião da Comissão Nacional “com um único ponto na agenda: como é que o PS se deixou instrumentalizar para os negócios de Sócrates”. Reconhece que chegou a acreditar na inocência de Sócrates e na “história de que a mãe era riquíssima”, mas a dada altura (em 2011) os seus colegas diplomatas faziam-lhe descrições de uma vida de luxo do ex-primeiro-ministro em Paris e ficou desconfiada, conta.

Sobre a situação da República face à corrupção, Ana Gomes considera que o país tem a “receita perfeita” para essa “desculpa”: “Admite-se que as pessoas não estejam em exclusividade e que deputados, a maioria deles advogados, estejam de manhã no Parlamento a votar e à tarde a produzir legislação e a fazer telefonemas para resolver problemas dos seus clientes… ” A socialista que se candidata à Presidência da República defende, assim, que os deputados estejam em exclusividade e sejam “muito mais bem pagos”. “Se alinhamos numa deriva populista de dizer que os políticos não podem ganhar mais do que X, depois não nos queixemos!…”, atira.

Um dos casos que acompanha e pelo qual deu a cara, apoiando publicamente o hacker Rui Pinto, é o football leaks. Conta como visitou “umas quatro ou cinco vezes” o jovem na prisão. “Ele é engraçadíssimo. Percebi logo que é um rapaz muito culto, fez o curso de História”. E espera que no julgamento “seja tido em conta o extraordinário serviço público que ele prestou, ao fazer as denúncias que fez, independentemente de o tribunal também concluir que ele praticou alguns delitos”.

Barroso tentou desviá-la para o PSD

É militante do PS desde 2002, inscreveu-se no dia seguinte a Ferro Rodrigues perder as eleições legislativas para Durão Barroso, que a tinha desafiado e ir para o PSD. “‘Não tenho nada a ver com o teu partido, sou do PS.’ E ele: ‘Mas um partido é um instrumento, como outro qualquer, para chegar ao poder.’ Aí respondi: ‘Ó meu caro Zé Manel, para mim não é! Para mim, é ideologia, são princípios, são valores, e eu revejo-me nos do PS e não nos do teu partido’.”, conta no livro. Foi no PS que sofreu uma desilusão política, logo dois anos depois, quando viu Jorge Sampaio a nomear Santana Lopes primeiro-ministro em vez de desencadear eleições depois da saída de Barroso para a Comissão Europeia.

Na altura, à porta do Largo do Rato foi dura com o então Presidente da República: “Acabei de receber um SMS de um amigo que diz tudo: uma maioria, um governo e um Presidente. A direita conseguiu aquilo que há muito sonhava”. Uma alusão ao sonho de Francisco Sá Carneiro que servia para acusar Sampaio. O antigo Presidente da República assumiu, anos depois, no 2.º volume da sua biografia da autoria de José Pedro Castanheira, que a posição o tinha magoado. Ana Gomes revela agora que chegou a ir “pessoalmente ao gabinete do Jorge, na Casa do Regalo, pedir-lhe desculpa por ter sido excessiva na expressão pública” da “mágoa pela atuação dele”. “E ele, graciosamente e como verdadeiro gentleman que é, aceitou o meu pedido de desculpas”.

O almoço secreto que virou a posição portuguesa sobre Timor

Grande parte da conversa que está prestes a ser publicada segue pelos caminhos timorenses que Ana Gomes travou e em que lembra como, logo em 1986, Mário Soares ainda em campanha presidencial, teve um almoço secreto com Ximenes Belo e como o socialista ficou “espantado” quando o bispo timorense lhe disse que o povo estava com a guerrilha e que todos estavam com  a Fretilin. Soares até perguntou a Ximenes: “Mas a Fretilin não são os vermelhos [comunistas]?”. “E o bispo respondia: ‘Quais vermelhos! São o povo, são o povo!'”. A posição portuguesa na altura estava inclinada para a entrega do território à Indonésia.

Ana Gomes conta como “Soares ficou abalado” com aquela conversa — confirmou isso mesmo com o histórico socialista anos mais tarde — e como quando chegou a Belém e travou a declaração luso-indonésia “sobre o processo para aferir a absorção do território pela Indonésia”. Convocou o Conselho de Estado a alterou a posição nacional que passou a exigir que a declaração conjunta previsse que nas eleições indonésias os timorenses fossem questionados “especificamente sobre se aceitavam ou não a integração de Timor na Indonésia”, revela nesta longa entrevista agora publicada em livro.