Depois de estarem durante muitos meses a dançar em casa, a usar cadeiras, mesas, tábuas de passar a ferro e outros expedientes como barra, depois de inventarem espaços impossíveis nas suas salas e quartos para continuarem a treinar diariamente, depois de aulas online, os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado voltam a pisar o palco este sábado, para a estreia absoluta do programa Primeira Vez, em Faro, no Teatro das Figuras.

Impulsiva, literalmente “bombástica”, eis a peça de Marco da Silva Ferreira, Corpos de Baile. Imagem:Teatro das Figuras

A estreia das duas peças Meu Corpo Teu Eco e Corpos de Baile estava prevista para acontecer em outubro, no Teatro Camões, em Lisboa, mas no dia do ensaio geral os bailarinos entraram em quarentena devido a um caso de Covid 19. Optou-se por fazer a estreia em Faro e a CNB já ia em plena auto-estrada quando António Costa declarou que o concelho de Faro entrará na lista de confinamento a partir da próxima semana. “Ficámos com o coração apertado”, confessa a diretora artística Sofia Campos, “sem saber se íamos conseguir estrear ou não”.

Mas as medidas de confinamento, na cidade de Faro, só entram em vigor no próximo fim-de-semana e os bailarinos, que desde março fizeram uma única apresentação pública, no Festival Ao Largo, em julho, vão poder fazer o gosto aos corpos onde vivem fechadas, há meses e meses, uma energia, um movimento e um desejo de celebração do espaço. O Observador acompanhou a CNB em Faro, onde o dia de ensaios começou cedo, com aulas que funcionam como aquecimento e depois um ensaio geral. O espetáculo, único, acontece pelas 21h30, depois de garantidas todas as medidas de segurança.

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Sofia Campos explicou que muitos bailarinos treinam com máscara, “embora não sejam obrigados, pois a máscara só é exigida quando não estão a dançar”. Esta noite, os seus corpos e os seu rostos vão deixar-se ver para apresentar duas peças muito diferentes, duas peças que representam a estreia de dois novos coreógrafos portugueses — apesar de já estarem a fazer uma carreira internacional na dança independente, é a primeira vez que trabalham para uma companhia de repertório.

“Este título que demos ao programa, Primeira Vez, tem subjacente a ideia de recomeço. Porque é o começo destes dois coreógrafos aqui na CNB, Filipe Portugal e Marco Silva Ferreira, mas é também o nosso recomeço depois destes meses todos. O tema não é ‘a pandemia’, não queríamos fazer as danças da pandemia, é preciso avançar, não podemos reduzir todo o nosso espaço mental e criativo à pandemia, de preferência queremos dar às pessoas coisas novas, que as levem a querer sair de casa para nos ver”.

A própria Sofia Campos, que assumiu a direção artista da companhia, depois da saída de Paulo Ribeiro, em 2018, ainda mal conseguiu pôr em palco os seus projetos. “No dia 13 de Março estreamos o programa Dançar Em Tempo de Guerra, em que voltávamos a dançar peças do pioneiro do teatro-dança, Kurt Jooss e introduzimos, pela primeira vez, no repertório da companhia, duas peças de Martha Graham, dois coreógrafos incontornáveis da história da dança, dos anos 30 do século XX. Tivemos que contratar uma professora para ensinar a técnica Graham, que é muito específica, vínhamos com meses de trabalho tão difícil como cheio de incertezas, avanços e recuos e depois da estreia fomos todos obrigados a ir para casa. Foi desolador”, confessa a diretora artística, ao Observador.

Teu corpo Meu Eco, é uma sereníssima peça sobre como o eco, os ecos uns dos outros nos habitam. Um evoluir da das sombras para a luz, do individual para o coletivo.Imagem:Teatro das Figuras

Com um trabalho desenvolvido na área da dança independente, quer como bailarina, quer como gestora artística, Sofia Campos passou pela companhia RE.AL de João Fiadeiro e pelo festival Alkantara, onde foi co-diretora durante vários anos. Mais recentemente esteve no Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II. Diz que ficou “surpreendida” com o convite para a direção da CNB, mas também “lisonjeada” por poder trabalhar com “uma companhia com tanto potencial”.

O primeiro programa que desenhou para a temporada de 2019/20, caiu quase todo por terra:

“Não foi posto de lado, foi adiado para 2021, embora não saibamos o que vamos conseguir fazer em 2021”, suspira. “É terrível porque temos que desenhar coreografias que não impliquem muita proximidade de grupo, não podemos ter fosso com orquestra, não podemos ter bailarinos a ensaiar uma grande peça de clássico e a treinarem em pontas, para depois termos que os mudar para uma coreografia menos clássica. É de uma violência física enorme, mesmo para profissionais que estão habituados a grandes esforços físicos e a dançar vários géneros ao mesmo tempo”.

Meu Corpo Teu Eco

Porque um corpo não é um ser um bruto, uma tábua rasa, mas tem inscrito no seu ADN e na sua memória tudo o que atrás de si aconteceu, porque a dança não é uma narrativa mas uma escrita sobre o efémero, onde cada gesto que se desenha no espaço é único e irrepetível. Porque a dança se liberta da tentativa de ser aprisionada numa linguagem racional, porque é mais rápida, mais subtil e mais simbólica do que a nossa mente cada vez mais treinada e guiada pela lógica racional, pode traduzir. “A dança precisa de conhecer e reconhecer a sua história”. Ela é a base de onde parte o seu devir. Esse trabalho sobre a memória é o fio condutor do projeto de Sofia Campos, onde ela afirma ainda querer “integrar todo o género de dança, recuar desde os Ballets Russes até à pré-história, avançar desde a escola francesa de Ballet Clássico até à street dance”.

Meu Corpo teu Eco, ou como a memória é fundamental para construir o presente

Teu Corpo Meu Eco, de Filipe Portugal, é uma peça neoclássica, onde o ballet em pontas é atravessado por outras linguagens mais contemporâneas e tem inscrito essa ideia de transmissão, de repetir como Eco, o chamamento de Narciso, mas também, quebrar essa linha, perder-se, ficar só, recomeçar. É um caminho que vai do individual ao coletivo, dançado por quinze bailarinos, entre eles os dois interpretes principais da CNB, Carlos Pinillas e Filipa de Castro. A peça tem vários duetos que são dançados por bailarinos que co-habitam para reduzir o risco de infeção.

Uma das prioridades da nova diretora é desenvolver, na CNB, um trabalho de memória da história da dança mas também trazer criadores da nova geração, que começam agora a ser reconhecidos “estes dois coreógrafos são hoje mais reconhecidos no estrangeiro que que em Portugal, embora tenham percursos feitos sobretudo na dança independente, que em Portugal, nunca foi apoiada devidamente”, afirma Sofia Campos.

Nesta linha vai estrear, já na próxima semana, em Lisboa, no Teatro Camões, o programa Trabalhos de Casa, onde se dá aos atuais bailarinos da CNB a possibilidade de coreografarem e mostrarem ao público outras valências do seu trabalho. “Foi este programa que apresentámos no Festival Ao Largo e agora vamos retomá-lo”, diz a diretora artística. “Os espetáculos decorrerão às quintas e sextas feira no teatro Camões, em Lisboa. Em dezembro ainda está programado ter nove apresentações de Primeira Vez, em Lisboa (às quartas, quintas e sextas, pelas 19.30) e uma ida ao Rivoli, no Porto. Espero que consigamos, fazer isto, desabafa.”

Corpos de Baile, é a segunda peça do programa que hoje se estreia, da autoria de Marco da Silva Ferreira, e é uma curiosa, alegre e explosiva obra onde a street dance encontra o contemporâneo. Num ritmo frenético como quem corre e salta sobre muros e obstáculos numa cidade, numa floresta, numa guerra. Com um ritmo crescente que nos lembra as danças tribais, a evocação dos deuses, o xamanismo, estes nove bailarinos são tudo o que nós queremos agora: saltar por cima do que nos constrange e dançar. Dançar, como dizia Pina Bausch “porque de outra forma estamos perdidos”.

Para o final de 2021 está agendada uma grande produção em ballet clássico, “se já pudermos ter muitos bailarinos em palco”, ressalva Sofia Campos. Já em janeiro teremos o regresso de Dançar em Tempos de Guerra”. Mas a diretora artística não se quer alargar em explicações, “porque atualmente só podemos viver ao correr dos dias e adaptarmo-nos à evolução da pandemia”. Para já, lembra que está a decorrer o projeto Planeta Dança, dirigido por Sónia Batista, que se destina a famílias com crianças. Esta aula-atelier decorre aos sábados de manhã, no Teatro Camões, e pretende contar a história da Dança. Vai estrear o segundo capitulo e, diz Sofia Campos, é “uma tentativa de inscrever a dança na nossa cultura, dar chaves de interpretação para aproximar os públicos da dança enquanto arte fundacional das sociedades humanas, desde os tempos mais remotos”.

*O Observador viajou a convite do Teatro das Figuras de Faro