Milionários que colecionam vinho como as pessoas comuns colecionam selos ou caixas de fósforos e têm enormes adegas “high tech”, com mais de 40 mil garrafas; leilões onde garrafas de vinho raro podem atingir as dezenas de milhares de dólares; jantares onde se bebe vinho no valor de mais de 100 mil dólares. Este é o meio retratado por Jerry Rothwell e Reuben Atlas no documentário “Sour Grapes”, de 2016 (só passou em festivais e televisões e foi agora “recuperado” pela Netflix), que investiga a maior fraude internacional de sempre com vinho falso, perpetrada no nosso século por um indonésio, Rudy Kurniawan, o primeiro homem condenado pelo crime de falsificação de vinho nos EUA. (Foi libertado este mês e deportado para o seu país).

[Veja o “trailer” de “Sour Grapes”:]

Como muitos outros burlões, Kurniawan era afável, extrovertido, insinuante e generoso. E um grande conhecedor e colecionador de vinhos, dono de um palato que os amigos classificavam como quase sobrenatural. Ele apareceu no meio dos colecionadores de vinho americanos mesmo no final dos prósperos anos 90, ao mesmo tempo que uma nova, afluente e exibicionista geração de apreciadores, que desembolsava somas colossais nos leilões da especialidade. Com o vinho transformado em mais um bem transacionável, Kurniawan começou a licitá-lo por pequenas fortunas, inflacionando o mercado e vendendo depois as suas garrafas a preços só ao alcance dos ricos e famosos com quem comia e bebia, cujas casas frequentava e acompanhava nos leilões.

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[Veja uma cena de “Sour Grapes”:]

Uma boa parte do vinho raro que o burlão comerciava, através da leiloeira especializada de um amigo comerciante embriagado pelos lucros que lhe proporcionava, era falso. Quando em março de 2012 o FBI entrou na caríssima mansão californiana onde Kurniawan vivia, descobriu que esta era uma vasta adega clandestina, onde além de centenas e centenas de garrafas, havia ferramentas várias e grandes quantidades de rolhas, lacre, selos e rótulos falsificados. Esta operação recebia e canalizava fundos de e para familiares de Kurniawan na Ásia, que estavam mesmo muito longe de serem flores que se cheirassem. Um deles tinha até estado na origem de um dos maiores desastres financeiros da história da Indonésia.

Rudy Kurniawan: a história do falsificador de vinhos que saiu da prisão

Apoiando-se nos comentários do escritor e crítico de vinhos Jay McInerney, os dois autores de “Sour Grapes” revelam como a burla de Rudy Kurniawan acabou por ser descoberta e objeto de uma investigação federal. E isto graças à determinação de Laurent Ponsot, um prestigiado produtor francês de vinhos da Borgonha, que não descansou enquanto não detectou quem andava a falsificar os vinhos com a sua denominação, Ponsot Clos Saint-Denis; e do americano Bill Koch, um multimilionário colecionador de vinhos que pôs o seu próprio detetive particular e um ex-agente da CIA a investigar Kurniawan, as suas origens e o seu dinheiro.

[Veja um programa de televisão sobre Rudy Kurniawan:]

Rothwell e Atlas não deixam também de sublinhar a credulidade dos amigos e íntimos do vigarista e com quem ele fazia as transações do seu vinho, uns deslumbrados pela imagem de “gajo porreiro” com bolsos sem fundo e de profundo conhecedor de vinhos que ele projetava, outros entusiasmados pelo dinheiro que fazia entrar nas suas caixas registadoras. E de tal forma, que alguns dos que Kurniawan enganou com zurrapa a passar por vinho raro e caro, ainda lhe dão o benefício da dúvida e minimizam os seus atos. Enquanto que outros nunca se chegaram à frente para o denunciar, ficando calados e guardando o vinho falso que pagaram como verdadeiro.

Este detalhado, absorvente e curiosíssimo “thriller” documental sobre uma vigarice de dezenas e dezenas de milhões de dólares num meio fechado e com pouca visibilidade mediática, o do vinho e dos colecionadores das marcas e denominações raras, é também uma viagem ao mundo dos muito abastados que aplicam, com maior ou menor gosto e felicidade, os seus proventos, em coleções de bens inacessíveis à carteira do comum dos mortais. No caso de “Sour Grapes”, vinhos pagos a peso de ouro que, na sua maioria, nunca serão bebidos e ficarão guardados na escuridão climatizada das suas adegas. E quantos mais Rudys andarão por aí a mercadejar gato por lebre de vinhos de topo de gama?  

“Sour Grapes” está disponível na Netflix