Nome lendário do jornalismo e da literatura de viagens, ex-oficial do exército britânico e mãe de cinco filhos, a escritora transexual Jan Morris morreu nesta sexta-feira, aos 94 anos, no País de Gales.

“Esta manhã, às 11h40 no hospital de Bryn Beryl, a escritora e viajante Jan Morris iniciou a maior das suas viagens, deixando para trás a companheira de vida Elizabeth”, disse numa declaração escrita um dos filhos, o poeta e músico Twm Morys. A causa da morte não foi indicada.

Elizabeth Tuckniss, com quem Jan Morris se casou quando socialmente ainda se apresentava como homem, em 1949, e com quem teve teve cinco filhos (um dos quais morreu em bebé), manteve-se ao lado da escritora por toda a vida. Depois da mudança de sexo, foram legalmente obrigados a divorciar-se, mas nunca se separaram.

Reconhecível pelo sorriso rasgado e por volumosos cabelos brancos, Jan Morris “foi uma das melhores escritoras britânicas do pós-guerra”, assinalou a BBC nesta sexta-feira. “Uma das mais admiradas e imitadas autoras de literatura de viagens”, classificou a revista americana Publishers Weekly.

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“Aproveitei bastante a vida e por isso tenho-lhe respeito”, declarou em 2o16 numa entrevista a Michael Palin exibida pela estação britânica. “Escrevi todos os meus livros a pensar que formam um só, uma enorme autobiografia. A minha vida foi um absoluto exercício autocentrado de autosatisfação.”

Expedição britânica ao cume do Evereste

Nascida na pequena cidade inglesa de Clevedon, perto de Bristol, em 1926, ingressou aos 9 anos na Escola do Coro de Christ Church, em Oxford. Depois, integrou o Colégio de Oficiais de Lancing e como militar no ativo esteve no 9º Regimento de Lanceiros da Rainha, um corpo de cavalaria mecanizada onde foi oficial de informações nos últimos anos da II Guerra Mundial.

Até abandonar o exército, por se sentir feminina e desintegrada da instituição, cumpriu serviço em Itália, na Áustria, no Egipto, na Palestina, no Curdistão.

Batizado James Humphrey Morris, mudou de sexo e de nome em 1972, no que à luz da época constituiu um gesto muito raro. Antes, tinha feito nome como o mais famoso jornalista britânico da sua geração. Viajou por todo o mundo nos anos 50 e 60, ao serviço do Manchester Guardian, do Times e da Agência Noticiosa Árabe no Cairo. As reportagens sobre a primeira expedição britânica ao cume do Evereste, de Edmund Hillaryem em 1953, serão dos seus textos mais célebres.

“Impulso transexual nunca me pareceu antinatural”

Escreveu quase quatro dezenas de livros, quase todos de não-ficção, mas durante anos foi desconhecida do público português. Desde 2009, a editora Tinta da China traduziu quatro volumes de sua autoria: Veneza, HavEspanha, Enigma: História de Uma Mudança de Sexo e ainda Manhattan ’45 — com traduções de Paulo Faria, Raquel Mouta e Vasco Gato.

De entre os quatro, Enigma, de 1974, é provavelmente o mais famoso e por certo o que lhe deu reconhecimento internacional, enquanto relato da mudança de sexo a que a autora se submeteu em 1972 em Casablanca.

“Uma das odisseias mais fascinantes que um ser humano alguma vez viveu”, escreveu. “O anseio transexual, pelo menos como eu o experimentei, é bem mais do que uma compulsão social, é antes biológica, imaginativa e essencialmente espiritual.”

“Enigma”: Jan Morris mudou de sexo e escreveu um livro para contar como foi

O livro teve uma primeira versão portuguesa em 1975, sob o título Conundrum: O Enigma, com tradução da escritora de origem angolana Wanda Ramos (1948-1998). O original chamava-se apenas Conudrum, palavra inglesa que pode significar enigma. Já este ano, a Tinta da China fez publicar uma outra versão do livro, desta vez intitulado Conundrum – A História da Minha Mudança de Sexo.

Datado face ao discurso político e científico que hoje existe em relação à transexualidade — isso mesmo foi reconhecido por Jan Morris numa introdução a uma reedição inglesa em 2001 —, Conudrum parece ter um lugar especial na história da literatura e das identidades, pelo pioneirismo e pela linguagem direta. “Compreendo que aos olhos do leitor possa haver algo de grotesco no impulso transexual, mas a mim nunca me pareceu ignóbil, nem sequer antinatural”, anotou nas primeiras páginas.

Distinguida com doutoramentos honoris causa por duas universidades galesas, a de Gales e a de Glamorgan, recebeu da rainha Isabel II em 1999 o grau de Comandante da Ordem do Império Britânico, uma comenda que notabiliza contributos nos domínios das artes e das ciências.

Jan Morris vivia desde há décadas no País de Gales, de onde era originário o pai, e era uma fervorosa defensora da identidade galesa.