Tal como a maioria todos os portuenses, também André Guiomar tinha uma ideia pré-concebida sobre o Bairro do Aleixo antes de o conhecer a fundo. “A primeira vez que passei pelo bairro, quando ainda era adolescente, vi-o apenas por fora. Cresci a aprender que o shopping da droga no Porto era efetivamente ali, o que explica muito dos preconceitos que quase todos tínhamos sobre aquele lugar”, começa por dizer em entrevista ao Observador.

Anos depois, no fim de 2012, entra no bairro como assistente de produção de um filme de Luís Vieira de Campos e descobre os seus recantos, entrando na casa e na intimidade de várias famílias de moradores. “Quando passo um mês todos os dias com aquelas pessoas percebo que é tudo muito mais complexo do que aparentava. Em mil e muitas famílias que viviam ali, todas tinham mil e uma perspetivas da vida, experiências e dificuldades. Existia uma complexidade gigantesca numa teia social muito peculiar cheia de pessoas que nunca foram ouvidas e nunca tiveram uma voz.

Construído em 1973, o Aleixo tinha 320 casas distribuídas por cinco torres, onde os primeiros habitantes vieram do centro histórico, especialmente da zona da Ribeira. A primeira torre foi demolida em 2011 e a segunda em 2013, várias famílias foram realojadas em bairros sociais vizinhos. O atual autarca do Porto, Rui Moreira, ordenou que as restantes três torres fossem demolidas por completo a partir de maio de 2019.

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Para o realizador de 32 anos, o Aleixo era “a cova de uma cidade que ninguém vê”, onde os moradores viviam separados da própria realidade. “Ao longo dos anos, construíram-se condições, inclusive arquitetónicas, para que fosse criado uma espécie de gueto, fizeram com que eles tendo uma igreja, uma escola, um ATL ou um cabeleireiro não tivessem necessidade de sair dali.”

A ideia de filmar um documentário naquele cenário surgiu de forma “completamente imediata” e foi motivada pelo fascínio em explicar as dinâmicas de um bairro marginalizado, estigmatizado e controverso. “Tenho esse lado documentarista e fascina-me a complexidade das coisas, não me fascina aquilo que é demasiado perfeito nem demasiado estragado. Consegui encontrar uma série de contradições naquela bairro que me levaram a tentar entendê-las.

O processo de filmagens começou em 2013, onde durante seis meses André Guiomar tentou representar os “últimos resistentes” do Aleixo, encontrando uma comunidade com “bastante vontade de comunicar os seus rituais” e “de sentir que tinha uma voz que poderia ser ouvida”. Quando regressa em 2019 com a câmara na mão, o realizador observa uma realidade bem diferente. “Seis anos depois chegam finalmente as cartas de despejo”, conta, acrescentando que se cruzou com moradores esgotados, sem forças e sem esperança, “com a vida suspensa à espera de uma ordem de despejo”.

Em abril de 2019, os últimos moradores deixaram as suas casas e foram realojados em bairros vizinhos

A estas mudanças, juntava-se também a perda de familiares, especialmente de uma das três personagens principais, o Zé da Bina, que entretanto tinha falecido, “vítima de ataque cardíaco e de um desgosto profundo”. “O capítulo de 2019 mistura o luto de uma saída eternamente incompleta do bairro. Para mim foi muito duro e muito intenso e muito doloroso, pois tive que acompanhar várias homenagens que me faziam emocionar de cada vez que filmava. Era algo que nunca me tinha acontecido, estar a filmar e, ao mesmo tempo, estar com eles a chorar imenso. Esse foi talvez o mais difícil de entender, onde começa e onde acaba o documentário.”

“Os pobres não têm direito a olhar para o rio”

Gradualmente, o realizador deixou de se impor e passou a fazer parte de determinados episódios familiares, com o intuito de “combater alguns preconceitos e mostrar o que se passava” naquele bairro em concreto. “Eles começaram a pensar o filme comigo e embora seja sempre impossível representar toda a gente, todos temos uma experiência pessoal num sítio. Esta foi a minha.”

O nome, “A Nossa Terra, o Nosso Altar”, vem de um fado que as matriarcas do bairro cantarolavam ao longo do dia e que ficou gravado no ouvido de André “pelo sentimento de pertença”, no entanto, há uma outra frase capaz de resumir a mensagem da sua primeira longa metragem. “Quando a Luísa antes de sair definitivamente de casa escreve na parede: “os pobres não têm direito a olhar para o rio”. Isto resume todo o processo de gentrificação e as suas consequências numa cidade que não é para todos.

O filme é “inevitavelmente” político e construído na tentativa de que os outros olhem para o mundo “de forma mais humana”, incluindo o poder político. “Todos nós, habitantes do Porto, temos um trauma muito grande daquilo que o Rui Rio provocou na cidade e as consequências daqueles mandatos ainda são visíveis. Tento sempre, de uma forma observacional, perceber as tensões e as emoções que se vão passando à minha volta.”

Revoltados, pressionados e nostálgicos. Os últimos moradores do Bairro do Aleixo

Para André Guiomar, não é possível comprovar a quantidade de pessoas que por desgosto morreram depois de terem saído do bairro, algumas 45 anos depois. “Não sabemos quantas pessoas sofreram, nem quantas delas morreram por uma simples decisão política. Custa-me muito que o Zé nunca venha a ver o filme, embora tenho a certeza que ele não mudaria uma vírgula, como se costuma dizer.”

“A Nossa Terra, o Nosso Altar” estreou no Sheffield Doc/Fest, no Reino Unido, na semana passada marcou presença no Festival Internacional de Cinema Documental e Curta Metragem de Bilbau, onde foi premiado, e é visto pela primeira vez em território nacional esta segunda-feira, pelas 20h30, no festival Porto/Post/Doc, no Teatro Rivoli. No próximo mês, passará ainda pelo DocLisboa, no dia 5 de dezembro, e tem já transmissão garantida na RTP 2 em 2022. “Para já, estamos a fazer a marcar presença nos festivais e a tentar a distribuição em sala”, adianta o realizador.

Devido à pandemia provocada pela Covid-19, o André Guiomar foi obrigado a interromper as filmagens em Maputo da sua segunda longa-metragem documental, com a produtora Bando à Parte. Ainda assim, espera arrancar ainda este inverno com uma curta metragem de ficção com personagens do Bairro do Aleixo, com a produtora Olhar de Ulisses. “Há histórias bonitas e importantes que não couberam neste filme e que fazem sentido serem contadas. Há ainda muita coisa por dizer.”