Tudo começou com uma ida às compras. Sílvia Plácido, uma designer gráfica de 31 anos, recorda o momento com a leveza própria de quem já solucionou um problema. Ainda assim, lidar com o olhar perdido da filha mais velha, na altura com menos de três anos, num corredor repleto de bonecas brancas, não foi fácil de digerir. “Ela ainda não falava assim muito bem, mas percebemos que estava à procura de alguma coisa. Queria uma boneca igual a ela e, realmente, não havia. Na altura, disse-lhe que eram todas tão bonitas que os meninos tinham levado todas para casa e já não havia mais”, recorda em conversa como Observador.

A família voltou para casa, em Vila Nova de Gaia, num misto de desconsolo e sentido de missão. “Há, de facto, essa falta de representatividade nas grandes superfícies. Sabia que existiam bonecas de outras etnias, mas são sempre um produto de nicho, mais difícil de encontrar. E não devia ser assim”, continua Sílvia, que na altura, algures entre fevereiro e março deste ano, se preparava para lançar uma marca de têxteis e decoração para crianças, a Mrs. Ertha.

As primeiras Loretas foram lançadas em outubro e esgotaram em três dias. Custam 49,90 euros © Divulgação

“Nunca tinha pensado em fazer brinquedos, além dos mordedores para bebés, mas foi nessa altura que surgiu a ideia de lançarmos uma coleção de bonecas de traços africanos”, explica a empreendedora. O primeiro passo foi contactar os fornecedores, os mesmos onde já estava a produzir as chuchas, entre outros artigos em silicone alimentar, cujo lançamento no mercado estava previsto para junho. Em outubro, Luana recebeu a sua primeira boneca negra. O nome que balbuciou às primeiras impressões levou a mãe a batizar as novas mascotes. O sucesso foi instantâneo, e a primeira leva de Loretas esgotou em apenas três dias.

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“Não estava à espera que tivessem este impacto. Comecei a ver a quantidade de partilhas no Instagram e a receber uma quantidade gigante de mensagens, muitas delas de pessoas que se identificavam com o pedido da Luana e que sentiam essa falta no mercado”, esclarece Sílvia, que, cautelosamente, fez uma primeira encomenda de 200 bonecas. O fornecedor está nos Estados Unidos, mas produz apenas as peças em silicone. Em Guimarães, as roupas e sapatos são feitas à mão, em algodão orgânico, seguindo escrupulosamente os esboços da designer. Também as caixas são produção nacional, compostas por cartão reciclado.

Mrs. Ertha, a marca que não queria produzir brinquedos

Além da chamada de atenção para a importância da diversidade, mesmo (ou sobretudo) tratando-se de um brinquedo, manter uma produção consciente é outro dos objetivos da Mrs. Ertha, que, como planeado, chegou ao mercado no dia 1 de junho de 2020. À exceção dos artigos que não conseguiu que fossem produzidos em Portugal, tudo o resto (cerca de 80% dos artigos) é feito no norte do país, entre o trabalho de artesãos — caso dos berços dos carrinhos de bonecas em vime — e os processos manuais com que são feitos lençóis e toalhas de banho.

O catálogo da Mrs. Ertha inclui quadros, berços, almofadas e lençóis © Divulgação

Criar uma marca de decoração infantil nunca tinha sido um objetivo para Sílvia Plácido. Mais uma vez, foi a necessidade a puxar pelo instinto empreendedor. “Começou quando engravidei da Luana e estava naquele processo de decorar o quarto. Não havia marcas diferentes e dei por mim a ter dificuldades em encontrar coisas que gostasse. Sempre tive muita facilidade em pôr ideias no papel, então comecei a desenhar uns quadros”, recorda. Depois dos quadros, veio o berço. Depois do berço, a roupa de cama. Entretanto, as chuchas. Aproveitava as horas calmas da noite para procurar e entrar em contacto com quem produzisse.

“Mostrava aos amigos e à família, mandava fazer umas amostras, mas, como fiquei em casa a tempo inteiro a tomar conta da Luana, achava sempre que não era a altura certa para avançar com a marca”, refere. Mas o lançamento da Mrs. Ertha (nome escolhido para ser uma mistura das palavras heart e earth) foi um tiro certeiro. Em seis meses, a marca já conta com mais de 15 pontos de vendas físicos em lojas multimarca, em Portugal, mas também na Suíça, em Espanha, no Reino Unido e em Angola.

Sílvia Plácido, a fundadora da Mrs. Ertha © Divulgação

“As Loretas só aumentaram ainda mais o interesse. Alguns revendedores contactaram-me por causa das bonecas e acabaram por vender também outros produtos da marca”, continua. A nova leva está quase a aterrar. Elas continuam à venda, embora as próximas entregas estejam previstas para dia 15 de dezembro. Com elas vieram também quatro puzzles, igualmente revestidos de um cariz solidário. A Helpo é uma organização não governamental que atua em Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, nas áreas da educação e da nutrição. Por cinco unidades vendidas (de bonecas ou puzzles), a marca oferece uma.

Entretanto, a família de Sílvia voltou a crescer e a das Loretas prepara-se para anunciar novidades no próximo ano. Os clientes pedem uma versão para bebés das bonecas de traços africanos, mais macias e fofas. A designer pensa em encolhê-las e criar-lhes uma casa, sem nunca perder de vista a diversidade, claro.