Não é um livro de nostalgia por outro futebol. É um livro de História do futebol, que começa precisamente por falar do jogo atual para o desmontar através das suas origens. Esse é o ponto de partida do luso-descendente Mickaël Correia em Uma História Popular do Futebol, livro agora traduzido para português e editado pela Orfeu Negro.

A visão global e os casos mencionados no livro mostram como o futebol acompanha a evolução das sociedades e é um reflexo delas. Mas isso não vem sem consequências e é para isso que Uma História Popular do Futebol alerta. O futebol mudou. Os clubes mudaram. O adepto mudou. Mickaël Correia conta a história, para o leitor perceber como e porquê. Sabe-se onde estamos se soubermos de onde viemos.

A capa de “Uma História Popular do Futebol”, de Mickael Correia (Orfeu Negro)

O Mickaël tem artigos publicados com uma opinião marcada contra o modo capitalista como funciona atualmente o futebol. Escreveu Uma História Popular do Futebol a pensar também nisso?
Houve três razões para escrever o livro. A primeira é pessoal. Os meus pais são portugueses, emigrantes no norte da França, uma zona muito operária. Eles eram igualmente operários. Desde menino que me envolvi com esta cultura popular do futebol, que sei que também existe em Portugal: as discussões na mesa entre os adeptos do Benfica e os do Sporting ou, por exemplo, como em casa se diz que se pode falar de política mas não se fala de futebol. Sempre joguei futebol na rua, nestes grupos operários da região do norte da França. Foi aqui que nasceu esta paixão pelo futebol e esta visão popular do futebol. Esta é a primeira razão, que tem mais a ver com as minhas lembranças de criança. A segunda é mais política. O futebol é universal. Podemos andar nos bairros populares em França, ou nos de qualquer país do mundo, e o futebol está sempre presente. E não há muitos artigos, ou pensamento político, sobre essa cultura

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Que existe um pouco por todo o mundo.
Sim, na China, na América do Sul, em África ou num bairro popular na Europa, podemos falar do Ronaldo, Messi, e isso é uma língua universal. Tem um lado político que é muito importante. Esta cultura universal e popular é única, não há muitas coisas assim. Mas, por exemplo, a história escrita das instituições, como a FIFA, omite isso.

E a terceira razão?
Mais jornalística. Em 2013 ou 2014 fui a Istambul, na Turquia, fazer uma reportagem sobre o movimento na Praça Taksim. Era o primeiro movimento social contra o regime autoritário de Erdoğan. Uma coisa que me espantou foi o papel muito importante dos adeptos do futebol, mais concretamente os adeptos do Besiktas, um grupo organizado, que tinha ferramentas de organização contra a repressão da polícia. Isso deixou-me muito espantado, havia ali um novo ator social: o adepto de futebol.

Tinha alguma expectativa em relação a esses adeptos? Contava com isso?
Foi uma surpresa ver isso, embora já tivesse ouvido falar, sabia que tinha acontecido no Egipto ou na Tunísia. Mas não pensei presenciá-la. Era uma coisa mesmo visível, porque eles cantavam os cânticos que se ouvem nos estádios de futebol. Estas práticas foram contaminar as outras pessoas deste movimento social. Fizeram uma importação dos comportamentos dos próprios estádios, como cantar, e acabaram as rivalidades: tinham só aquele objetivo comum, o fim do regime de Erdoğan. E todo o folclore, a dimensão carnavalesca, os foguetes dos adeptos do futebol, as faixas, todas estas práticas, estavam presentes. E foi uma surpresa. Fui lá ver este movimento social, não esperava encontrar uma ótica futebolística.

Já tinha noção desta história popular do futebol?
Conhecia as histórias do Sócrates no Brasil, por exemplo, de um jogador que tem esta dimensão popular, tal como o Maradona. Tinha uma história muito fragmentada na minha cabeça. Tenho um amigo que é fascinado por esta história do futebol – ajudou-me muito nos primeiros capítulos do livro –, sobre o nascimento do jogo. O jogo popular, conhecido, depois padronizado pela aristocracia para se tornar neste desporto rei. Todos estes fragmentos, depois de entrar na Turquia, começaram a fazer sentido para contar uma história popular do desporto.

O autor, Mickaël Correia

Qual foi a história que mais o impressionou, a nível da movimentação de classes populares ou de protesto?
A história do Sócrates, no Brasil. Como um pequeno clube de futebol, durante uma ditadura militar, foi um laboratório popular da democracia. Isto mostra mesmo o poder no futebol. No Brasil, no princípio dos anos 1980, dizia-se que se sera possível ganhar a democracia no futebol, seria possível ganhá-la na sociedade. Foi algo importante. E foi importante o Sócrates participar no movimento Diretas Já, manifestações para uma votação direta no Presidente da República. Ele estava à frente do movimento, dizia-se que isso poderia acabar com a sua carreira futebolística. Foi uma boa articulação entre os adeptos de futebol, um clube e a dimensão política dos jogadores. Essa história atualmente tem outra relevância, porque vemos como, no Brasil, muitos jogadores participaram na eleição do Bolsonaro. E há uma contradição histórica aí: nos anos 1980 o futebol foi uma forma de contrariar a ditadura política, agora é algo que apoia uma ideia de um regime contestado por muitos.

No livro refere a forma como Lionel Messi e Cristiano Ronaldo são vistos pelos jovens, um olhar que tem pouco a ver com o que acaba de mencionar. Acha que o futebol poderá voltar a ter essa dimensão política? As grandes estrelas, os grandes jogadores, não se parecem sujeitar a isso: como diz no livro, são marcas. Os clubes e os jogadores são marcas.
O Barcelona sempre disse que temos a nossa Disneyland, que é o Campo Nou, e o nosso Mickey Mouse é o Lionel Messi. O futebol é um reflexo da sociedade do presente. E não estamos num período de politização da sociedade. Um jogador, como o Sócrates, nos anos 1970, 1980, era uma consequência histórica, política, importante, e a juventude estava a lutar por liberdades individuais. No livro menciono a greve dos jogadores do Manchester United no início do século XX. Isso era um reflexo da cidade onde viviam, uma cidade operária. E eles queriam que a sua função – como jogadores de futebol – fosse vista como um verdadeiro trabalho. Atualmente, há outro tipo de politização da sociedade, há o movimento Black Lives Matter nos EUA, mas que tem impacto um pouco por todo o mundo – por exemplo, o Mpabé tem tido um papel muito ativo em França. Ou a campeão do mundo, a Megan Rapinoe, que tem lutado pelos direitos LGBT, pela igualdade e é uma figura muito anti-Trump. A politização dos jogadores segue a politização da sociedade.

Como espectadores temos um papel. No livro dá o exemplo do Barcelona, onde os adeptos dizem que não reconhecem as pessoas que agora se sentam ao seu lado. Não sei se leu o Fever Pitch, do Nick Hornby…
Sim, é um livro muito bom.

Hornby refere que quando as bancadas do Arsenal passaram a ter cadeiras e o povo deixou de poder ir ao futebol, ele já não reconhecia as pessoas ao seu lado. Atualmente, o povo tem dificuldade em ir ao futebol, ao dos grandes clubes. Isso tem um peso na forma como o futebol é visto hoje em dia?
Desde os anos 1990/2000, que se está a assistir a uma gentrificação das bancadas, uma Disneylização. Isso é algo que se traduz pelo aumento dos preços dos bilhetes. Na cidade de Liverpool, uma cidade operária, entre 1990 e 2001 o preço aumentou mais de 1000%, 1101%, salvo erro. É enorme, para um clube assim. Aqui em Marselha, que é o grande clube popular de França, o preço, em quatro anos, aumentou 120%. O PSG, que era o grande clube popular, tem bilhetes a, no mínimo, 250 euros. Estamos a modificar a condição social das bancadas. Uma família não pode pagar 3 ou 4 bilhetes a 50 euros. São 200 euros para ir ver um jogo. Houve um estudo aos adeptos do Manchester, que mencionava que nos anos 1970 o adepto médio era um jovem de 18 anos, e pagava o seu bilhete no estádio. Agora o adepto médio tem 40 ou 45 anos e paga mais ou menos 120 euros cada vez que vai ao estádio, bebe uma cerveja, compra uma camisola. Isto é uma modificação do espectáculo. Em breve, só os ricos poderão ir ao estádio. E os pobres vão ficar nos cafés a ver o futebol. Algo importante para mim são as experiências, a repressão policial dos adeptos. O estádio foi sempre o grande laboratório das práticas policiais, especialmente em França. Os adeptos foram o primeiro grupo social a ser sovado, abordado pela polícia, o primeiro grupo social onde foi experimentada a videovigilância. Tudo isto mostra uma rutura, uma separação do futebol das elites, com este objetivo de mercantilização extrema, tirar o futebol do povo.

No passado, o futebol entrava nos países com esse fator social, mais associado às classes operárias. Nas últimas décadas, tem chegado a certos países asiáticos, ou aos Estados Unidos, como um produto de entretenimento de luxo. Isso poderá transformar a forma como se vê futebol e se joga futebol nas próximas décadas?
O objetivo do futebol-negócio é vender o futebol como produto internacional. Nos anos 1970, quando o João Havelange se tornou presidente da FIFA, a primeira coisa que disse foi: “Estou aqui para vender o produto que se chama futebol”. É um produto como Coca-Cola, a FIFA já tinha essa perspetiva de vender. E está a modificar muito a maneira como se joga o futebol. Já se vê isso na Europa, com os horários que são adaptados para serem vistos na televisão na China, na Ásia. Em França, há essa prioridade. Sou adepto de um pequeno clube em Paris, e os jogos agora são às 17, 18 horas, de uma sexta-feira. Não são ao sábado ou domingo às 20 horas. E temos igualmente uma segunda tradução deste produto internacional: alguns clubes, como o Manchester City, são hoje um franchise. Temos um Manchester City em Nova Iorque, no Japão, é uma marca que existe em vários países. Não temos a qualidade histórica/social dos clubes. Os clubes são desenhados como marcas. O logo da Juventus é um bom exemplo. Fizeram um logo muito mais simples. O logo que era histórico, foi alterado para um que parece um logo de um smartphone, uma marca tecnológica. Há mesmo uma simplificação dos logos dos clubes. E todas estas pequenas tradições, a sua alteração, mudam a forma como o jogo se joga.

Essa mudança nos clubes – até no nome – pode acabar com a história dos clubes, quebrar a relação com os adeptos do bairro? Daqui a 10, 15 anos, muitos clubes estarão enfraquecidos, sobretudo porque se afunilam os adeptos para os grandes clubes, a favor destas mudanças
Nos grandes clubes já não se pode ir aos grandes estádios, porque é caro. Mas nos pequenos clubes podemos viver uma outra experiência, mais popular, não há polícia, podemos beber cerveja, é mais barato, há outra socialização.