O que leva um pintor a pintar é o mesmo impulso que o leva a escrever? Se for escrever sobre pintura, se for escrever sobre o acto de pintar, se for escrever sobre a sua própria pintura, sobre aquilo que o leva a pintar, talvez a resposta possa ser sim, embora Jorge Martins nos diga que, se sabe porque escreve, não sabe porque desenha.

E o que é certo, na obra que aqui apresentamos, é que Jorge Martins escreve, essencialmente, como muitos antes dele o fizeram (desde o Renascimento), para perceber a sua arte, para a perceber no contexto restrito da arte dos outros e no contexto alargado de todos os discursos (literários, míticos, científicos) em que se insere; para, finalmente, perceber as suas motivações como artista, perceber o seu destino.

Com uma carreira longa e vasta, de exposições nacionais e internacionais, Jorge Martins sofre, como a generalidade dos seus conterrâneos artistas, da inexistência de mercado e crítica para acolher a arte portuguesa no panorama internacional. A sua obra divide-se, essencialmente, entre desenho e pintura, mostrando uma forte inventividade de formas e técnicas, sempre desenvolvidas em redor de temáticas absolutamente concretas (o corpo, o corpo feminino, o corpo erótico; objectos do mundo, aviões ou lanternas eléctricas; e encenações fragmentares do quotidiano) e em redor de formas/cores capazes de definir espaços ilusórios (mais ilusórios ainda do que é a ilusão esperada da pintura, diríamos) onde Jorge Martins situa esses corpos, esses objectos e essas cenas — porque o espaço (como o tempo) é obsessão maior na sua obra e na sua reflexão sobre a vida e a arte.

A capa de “Cadernos”, de Jorge Martins, edição do MARCO e da Documenta

Na construção desse universo de imagens, o papel da cor (cores sensuais e luxuriantes ou cores frias e ácidas como algumas das suas frases) é essencial — mesmo nos desenhos, onde o preto e branco é absolutamente dominante, e onde os jogos ilusórios da abstracção são mais livres ainda que na pintura, a riqueza das texturas e padronizações, a mudança súbita da força ou da direcção dos traços, criam verdadeiras sugestões de cor, como se estivéssemos perante transcrições de pintura para um meio sem cor, tal como na gravura antiga se praticava.

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O balanço de um empreendimento como este, reunir os conteúdos de dezenas de cadernos escritos e desenhados entre 1964  e 2020 é sempre um risco positivo. É-o, especialmente, no caso de um artista muito conhecido mas nem sempre entendido, de um artista múltiplo no fazer, nos interesses culturais (arte, literatura, música, ciência) e na complexidade temperamental: entusiasta e deceptivo, céptico e apaixonado, assertivo e dubitativo, irónico e auto-irónico. Podemos sair mais esclarecidos acerca do seu mundo, mas isso não quer dizer que ele no-lo explique.

Para tal necessitava, ele mesmo, de se compreender — e, sistematicamente, Jorge Martins revela-nos a sua incompreensão sobre si mesmo, suas motivações, seus amores e desamores, suas decisões e hesitações. O que ele nos revela aqui é um imenso conjunto de imagens-escritas que juntaremos ao imenso conjunto imagens-visuais que já conhecemos e às que agora descobrimos em quase todas as páginas destes Cadernos: magníficos desenhos, por vezes apontados como ideias que desenvolverá; outras vezes autónomos; muitos deles compostos em “fotogramas” ou quadradinhos-BD carregados de humor, ou de erotismo ou fruto de uma enorme liberdade gestual; outros, finalmente, procurado soluções práticas para uma montagem concreta…

Um dos recursos mais evidentes que Jorge Martins utiliza nas montagens da suas exposições, reflectindo aliás o próprio percurso da sua obra, é o de confundir modelos e temas, o de cruzar séries de diferentes temporalidades. Os Cadernos, onde foi inscrevendo todas estas reflexões, são apresentados neste volume através de uma montagem não cronológica onde as referências a dias, meses e anos se sucedem sem ordem. Ficamos assim sem essas referências precisas no fio destas páginas — e é tudo o que importa para percebermos que esta obra nos faz mergulhar no centro de um vórtice que, como em muitos dos seus desenhos, nos quer arrastar com ele.

Cadernos foi editado por impulso de Miguel Fernandez-Cid (director do MARCO, Museu de Arte Contemporânea de Vigo) e Oscar Molina (curador da exposição que esteve primeiro no MEIAC, em 2018 e depois no MARCO, em 2019), tendo textos complementares de ambos e de José Gil e Joana Baião (a quem se deve a transcrição); à Fundação Carmona e Costa se deve o financiamento do projecto. Ao longo de quase 700 páginas (350, se considerarmos que a obra está traduzida para castelhano) seguimos os quase 50 anos de vida artística, descobrimos as bases de construção de uma personalidade e de uma obra e as suas linhas de referência — porque vamos seguindo citações e autores referenciais, afirmações próprias acerca da obra própria e da obra alheia, vamos seguindo certos factos mais marcantes (exposições, encontros, leituras, filmes vistos e audições musicais), vamos olhando as veladuras sob as quais Jorge Martins protege a sua vida privada.

A coerência da obra visual faz par com a da obra escrita, sustentado-se esta num conjunto restrito, e a que sistematicamente regressa, de nomes e temas, de atitudes e sentidos. Vejamos: a Música e a Física; um certo humor irónico e auto-irónico; a contraditória tripla de artistas Kandinski, Malevitch, Duchamp; os problemas da cor, do tempo e do espaço na arte; Goethe, Paul Valéry, Thomas Mann (através da novela “Toni Kroger” que Jorge Martins toma para si como imagem de anti-(?)herói); a comparação entre as artes, expondo a diferença que acha entre pintura e desenho ou afirmando a superioridade da música relativamente à pintura; as reflexões desesperadas para com Portugal — mas, realmente, é todo o Mundo que lhe pesa.

De facto, a angústia de ser artista, de o ser como é, o desprazer que lhe proporciona a arte actual, domina o fio destas reflexões. Mas se a arte própria e a do seu tempo, cada uma a seu modo, o desgostam, delas não se consegue libertar — Jorge Martins sente-se preso numa dependência de que, sabe, só se libertará trabalhando sempre e ainda mais, sabendo que está perto do limiar de uma solução mas sabendo também que nunca o irá transpor. E o ciclo de escrita/leitura recomeça sempre em redor deste núcleo… Por isso, podemos dizer que estes Cadernos são Cadernos de Reclamações, queixas lúcidas contra o Mundo e contra si mesmo — o que deles tiramos não são orientações para emendar o estado das coisas; mas ajudam-nos para entender o artista e entender o seu Mundo.

*Os “Cahiers de doléances” recolheram, a pedido do próprio rei Luís XVI, as queixas dos Três Estados (Clero, Nobreza e Povo) relativamente à situação do reino de França. Tendo sido apresentados e discutidos a partir de Maio de 1789 na Assembleia dos Estados Gerais, fazem parte do processo político e social que levaria ao desencadear do movimento revolucionário dos meses e anos seguintes.