A 18 de março de 2020, o mundo reagia atordoado a uma nova realidade. O novo coronavírus era um agente desconhecido que ameaçava alterar a maioria dos hábitos instaurados ao longo de décadas. Multiplicavam-se as vozes e opiniões, difundiam-se teorias falaciosas, o Instagram ganhava ainda mais força enquanto palco (mais tarde com as estantes a assumirem um protagonismo inédito). Uma delas foi a de Felipa Garnel e Nuno Lobo Antunes. Casados há 20 anos, vestiram as personagens que melhor convinham a um esclarecimento despretensioso das dúvidas mais frequentes. Em A Loira e o Doutor, as perguntas são de senso comum, as respostas têm teor científico.

“A ideia foi da Felipa e o título foi meu, mas ela disputa. É uma guerra que nós temos”, começa por admitir o neurologista, durante uma conversa com o Observador. A caminho do Porto, o casal não se alongou no despique. A criação de conteúdo informativo, tirando partido dos conhecimentos científicos de Nuno, mas também da curiosidade de Garnel, era uma ideia há muito mantida na gaveta. Como aconteceu a tantas outras, a pandemia fê-la sair. “Já tínhamos a ideia de fazer algo sobre medicina, visto eu gostar de perguntar e o Nuno de explicar. Decidimos começar. Durante o confinamento, fizemos um vídeo por dia. Hoje, fazemos diretos de vez em quanto, sempre que surge um tema atual e interessante”, explica Felipa.

[O primeiro vídeo, publicado a 18 de março]:

Passaram praticamente nove meses desde o primeiro vídeo em direto, sobre o uso correto de máscara e luvas na contenção do vírus. A rubrica cresceu e a conversa das nove da noite viu a audiência a aumentar. Começou com as modestas centenas que assistiram ao primeiro diálogo entre “Loira” e “Doutor”, num perfil de Instagram acabado de nascer, e chegou a quase 109 mil visualizações no Facebook, valor registado na última sessão, a 22 de novembro, sobre vacinas contra a Covid-19.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Eram dúvidas genuínas, com as quais acho que a maioria dos portugueses se identificavam. O Nuno trabalhou muitos anos nos Estados Unidos e mantém vários grupos de discussão com colegas de lá. Fomos dos primeiros a falar da perda de olfato e paladar como sintoma, por exemplo”, continua a jornalista e apresentadora. “Depois, éramos marido e mulher numa situação de confinamento. Somos ambos bons comunicadores, tínhamos muita cumplicidade e isso atraiu as pessoas. Aquela complexidade da relação entre jornalista e entrevistado nunca existiu”, completa Lobo Antunes.

Juntos no mesmo ecrã (e na mesma sala), a ausência de distanciamento físico chegou a gerar críticas. “No princípio, havia quem não soubesse que éramos casados”, justifica Felipa. Dentro de quatro paredes, o projeto acabou por facilitar a vida a dois, a começar pela possibilidade de criar uma rotina, mesmo sem sair de casa. “Falou-se muito do aumento de tensões durante o confinamento. No nosso caso, esta partilha de esforço deu-nos um grande gozo. Foi um aspeto positivo desse período, diria”, esclarece Nuno, que, além das consultas à distância, separava tempo para preparar os temas em cima da mesa. Enquanto isso, ela editava os vídeos, incluindo os bloopers, onde, segundo o “Doutor”, não faltam os “palavrões da Felipa”.

Felipa e Nuno são casados há 20 anos. Ela é jornalista e apresentadora. Ele é neurologista © imagem cedida por Felipa Garnel

Da ação da fruta e das suas vitaminas no combate ao vírus às teorias sobre o Brufen, passando pelas compras do supermercado (o que lhes fazer?), os falsos negativos, o tigre do Bronx e pela quarentena do príncipe Carlos, estas sessões de esclarecimento percorreram os temas, as teses e as notícias na ordem do dia. “As pessoas precisavam de algo mais, além das conferência de imprensa chatas da DGS. Eles fazem o seu melhor, mas não respondem às perguntas de senso comum”, continua Felipa.

Informar e esclarecer viria a ser apenas parte do propósito destas conversas. As dúvidas começaram a chegar e com elas os testemunhos de ansiedade e solidão, sobretudo do mais velhos. Garnel fala em avós que esperam pelo o dia em que vão poder “voltar a abraçar e beijar”. “Sente-se a solidão do outro lado”, remata.

O formato já se estreou fora das redes sociais. Recentemente, Felipa e Nuno deram uma pequena conferência a pedido de uma câmara municipal, opção que pode representar o futuro destas conversas iniciadas em março e que, por causa da pandemia, têm decorrido apenas online. “Apesar da complexidade deste tema e da atual avidez das pessoas, a saúde é sempre um bom tema, independentemente da altura. Isso já nos fez pensar se não haverá temas interessantes dos quais possamos falar, depois desta pandemia passar”, refere Garnel.

[O mais recente vídeo, publicado a 22 de novembro]:

Nas redes sociais, o sucesso das métricas é indiscutível, sobretudo depois do último vídeo ter ultrapassado a barreira dos 100 mil (o anterior tinha ficado pelos 85 mil) num perfile de Instagram com menos de 10 mil seguidores. Felipa fala numa grande margem de crescimento e pensa, pela primeira vez, em rentabilizar o formato “sem comprometer a informação”. “Até agora, não ganhámos um tostão nem tivemos qualquer intuito comercial. Nunca podemos perder o foco no serviço público, mas há aqui uma oportunidade para, através de câmaras e juntas, chegar a populações menos digitalizadas”, revela.

Para Nuno, incluir a mulher na preenchida agenda de palestras e conferências representa uma lufada de ar fresco. “Somos uma jornalista e um médico, mulher e marido, que não concordam em tudo. Mas é da forma que temos uma discussão mais viva”, remata Nuno.