“Estou muito grato por ter feito parte de ‘Breaking Bad’, mas depois é preciso seguir em frente”.
Nunca é fácil dizer adeus a personagens icónicas. No último episódio da série criada por Vince Gilligan, Walter White despede-se de milhões de fãs, num plano final triste, deitado, sem forças, à beira da morte. Mal sabíamos que o ator que lhe deu corpo e personalidade, Bryan Cranston, entre 2008 e 2013, idolatrado por muitos, vencedor de uns quantos prémios, poderia sentir, apesar do sucesso, uma vontade de colocar um ponto final. Pois bem, o “seguir em frente”, é dele.
O ator norte-americano, assim que colocou os óculos, o chapéu e o negócio multimilionário de anfetaminas de parte, partiu para longe da televisão, durante três anos. Uma “moratória”, como apelida, para dar tempo suficiente ao público, que lhe permitisse explorar outros papéis, sem a marca de Walter White. Voltou para entrar na série cómica “Curb Your Enthusiasm” (em Portugal tem o título “Calma, Larry!”), alguns filmes como “Trumbo” ou “Godzilla”, ou ainda para subir ao palco do teatro com “Network”, que lhe valeu um prémio Tony em 2019 — prémio que já tinha ganho com “All The Way”. Agora, ao fim de sete anos, deu um pontapé no passado e está de volta como protagonista numa mini-série dramática televisiva, “Your Honor” (cá disponível na HBO), onde encarna um juiz, Michael Desiato, que decide salvar o filho das malhas da justiça.
As comparações entre Michael Desiato e Bryan Cranston são expectáveis e até óbvias: os dois aparentam ser homens normais, bons, que se veem catapultados, de um momento para o outro, para um mundo desconhecido, muitas vezes sujo, que os obriga a tomar (ou os faz escolher, talvez mais acertado) más decisões. O primeiro, juiz de profissão, justo, consciente, entrega-se ao impulso, quando fica a saber que o seu filho atropelou o descendente do clã mais criminoso de New Orleans. O segundo, bom, já se sabe, é um professor de química, com cancro pulmonar terminal, que resolve tornar-se num barão de droga. É o saltar para o lado imperfeito que cada um de nós tem, mesmo que esteja bem escondido.
[o trailer de “Your Honor”:]
Ainda que o público e a crítica possam destacar tais semelhanças, isso não demoveu o ator norte-americano de abraçar este novo desafio. “Não tive medo, mas era expectável. Quis dar algum tempo e espaço para que tudo acalmasse, permitindo que o público me visse de outra forma que não como Walter White. Porque eu não penso no meio, na verdade. Se devia fazer televisão, teatro ou cinema. Só aconteceu quando acabou o ‘Breaking Bad’, porque precisava de fugir daquela personagem. Mas essa foi a última vez”, garante, em entrevista ao Observador. Talvez a expressão “entrevista”, aqui, seja publicidade relativamente enganosa. Chamemos-lhe “boa conversa”, que dez minutos ao telefone com uma estrela da TV americana por ser um privilégio.
Aos 64 anos, com uma carreira bem recheada onde quase só lhe falta um Óscar na sala de troféus, Bryan Cranston confessa que ainda lhe quer fazer um musical. “Quero fazer um, sim, mas também um one man show a certa altura, para ver como reajo, se sou bom. Assusta-me saltar para algo fora da minha zona de conforto”. O exercício de perceber que zona é essa torna-se difícil para o mais comum dos mortais, já que o ator tem andado pela comédia e pelo drama, conseguindo interpretar a personagem mais cómica, ou deixar toda a gente chocada, sem conseguir respirar. Basta pensar que saltou para a ribalta na televisão com “Malcolm in The Middle” — a série chegou a passar na SIC Radical –, como pai hiperativo e tresloucado quando antes já tinha tido uns quantos pequenos papéis em tantos outros filmes ou séries como “Baywatch”, “X-Files” ou até “O Resgate do Soldado Ryan”. Agora, não interessa o género, só as histórias que o movem.
Mas em “Your Honor”, a história não gira apenas em volta da ideia de anti-herói que precisa de manchar as mãos de sangue para salvar a própria família. Há todo um sistema judicial que é destapado, entre polícias corruptos, mafiosos, minorias arrastadas para crimes e uma alfinetada a uma realidade bem visível nos Estados Unidos da América (EUA), que tem afetado, e muito, a comunidade afro-americana.
“Quero acreditar, prefiro acreditar, que, inicialmente, a maioria dos juízes, talvez mesmo todos, vai para esse cargo por razões altruístas. Pretendem beneficiar a sociedade, fazer justiça, ser bons mediadores. Gosto de lhes dar o benefício da dúvida”, afirma.
Tal como aquele que é dado pelo espectador quando se depara com o caso de Michael Desiato. Só que o próprio sistema, cheio de falhas, de falta de investimento financeiro, com julgamentos demasiados rápidos, pode tornar-se estranho e até perverso. “Acredito que alguns deles se fartem do sistema, deviam reformar-se. Porque a sua eficácia diminui”, diz. Fica o conselho.
A razão pela qual Bryan Cranston tem agarrado estas personagens explica-se pela imperfeição narrativa que o seduz, pontos fracos, falhas, virtudes, vulnerabilidades, elementos que permitem criar uma relação entre a ficção e a realidade. Uma linha muito ténue onde o público pode torcer pelas suas personagens, ou tapar a cara quando cometem um erro. Fazer figas para que sigam um bom caminho, mas sorrir sorrateiramente quando escapam das trapalhadas que cometem. É que, sem que se conheça bem o contexto, podemos condenar Michael Desiato pelos atos que comete, mas não deixamos de sentir algum tipo de compaixão.
“Atrai-me a imperfeição, porque este juiz tem de tomar uma decisão impulsiva para proteger o filho. É essa a situação em que se costuma encontrar? Claro que não! É um homem justo e bom, que, num determinado momento, tem de decidir algo que vai mudar completamente a sua vida para sempre. E isso é muito dramático”.
Todos temos pontos de rutura, um fusível que deixa de funcionar e nos leva para o lado mau da força. Até o próprio ator que, ao pesquisar pelo próprio nome no Google, pode dar de caras com uma simples pergunta: “O Bryan Cranston é uma pessoa boa?”. Pelos vistos, sim. Pelo menos, normal, como as outras. “Tento ser respeitador, feliz, ter uma boa vida, criar boas relações à minha volta. Mas também consigo ficar chateado ou irritado. Não conheço ninguém que não fique”, comenta.
Talvez a única personagem que não interesse muito explorar ou gerar simpatias é mesmo Donald Trump, o ainda presidente dos EUA. “Temos de sair desta tragédia. Nunca tinha passado por isto. É uma anomalia na América. Normalmente, as mudanças são incrementais, a política pode ir mais para a esquerda ou mais para a direita, mas com Trump foi ‘bang’!, mudou completamente tudo para o seu lado. Toda a gente ficou a questionar-se o que é que tinha acontecido”, garante. Mesmo assim, ao fim de quatro anos de presidência, Bryan Cranston “dá crédito” ao também líder do Partido Republicano, por ter “estimulado o interesse pela política, mais do que qualquer outro período da nossa história recente”. Mas mais gente interessada não significa obrigatoriamente um debate político melhor. “Trump trouxe um mundo mais difícil, mais cruel, menos gentil e respeitável. Tenho saudades do mútuo respeito entre pessoas, quando se podia discordar sem ser rude”, finaliza.
Não se sabe qual será o próximo projeto de Bryan Cranston, portanto, por agora, fiquemo-nos com o seu Michael Desiato, que não é Walter White, mas que promete fazer tudo — mas mesmo tudo — para cumprir o objetivo inicial a que se propôs: salvar o filho. E com a garantia que, apesar de o ator ter contraído Covid-19 em março, já se encontra bem. “Tive sorte, só sintomas leves. Agora está tudo bem”, termina. É, por isso, tempo de seguir em frente.