Steven Soderbergh já há muito que nos habituou às mais variadas experiências e inovações nos seus filmes: técnicas, com novos dispositivos, com modelos de estreia e exibição e até mesmo interativas. Em “Let Them All Talk”, já disponível na HBO, Soderbergh experimenta com a história e os atores, através da improvisação. O realizador trabalhou sobre um esboço de argumento com algumas dezenas de páginas, o primeiro da escritora Deborah Eisenberg, que caracterizava as personagens e esboçava algumas sequências-base da intriga. A partir daí, a bola estava do lado do elenco, onde se destacam Meryl Streep, Candice Bergen e Dianne Wiest nos três papéis principais.

[Veja o “trailer” de “Let Them All Talk”:]

O filme, quase todo passado a bordo do transatlântico Queen Mary 2, foi rodado, ligeirinho e discretamente, numa semana, durante uma travessia dos EUA para Inglaterra em agosto de 2019, tendo Soderbergh também assegurado a fotografia e a montagem, sob os nomes, respetivamente, de Peter Andrews e Mary Ann Bernard. Meryl Streep personifica Alice Hughes, uma premiada romancista que vai receber um prestigiado galardão (fictício) a Inglaterra. Como não gosta de voar, propõe à editora ir de transatlântico e convidar duas velhas amigas que não vê há décadas, Roberta (Candice Bergen), que trabalha numa loja de roupa interior, e Susan (Dianne Wiest), uma advogada, bem como o sobrinho, Tyler (Lucas Hedges), que a venera. Sem Alice saber, vai também no navio a sua agente, Karen, ansiosa por ter notícias do novo romance que ela está a escrever, e que recruta Tyler como informador.

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Apesar de haver motivos para tensão e confrontos na história – Roberta e Susan sentem-se muito distantes de Alice, a ligação entre elas já não é a mesma de há décadas atrás; Roberta nutre um grande ressentimento por Alice a ter usado como personagem, mais os detalhes do seu desastroso casamento, num dos seus livros; a bordo segue também um autor de policiais que se vendem aos milhões e que Alice encara com desdém (e um grão de inveja) –, bem como para um subenredo romântico – a cescente atração de Tyler por Karen –, Soderbergh frustra sempre as expectativas do espectador. Nada se passa como poderíamos esperar. Aliás, não se passa muita coisa na fita, e até a conversa é reduzida quase ao mínimo essencial.

[Veja uma entrevista com as três atrizes:]

“Let Them All Talk” é um filme de elipses e subentendidos, de episódios soltos e micro-incidentes, de pequenos enigmas e equívocos. Apesar de as ter convidado, Alice esquiva-se das amigas, segue uma estrita rotina a bordo e tenta arrancar com o novo livro, Roberta procura caçar um homem rico nos intervalos de tentar chegar à fala com Alice, Susan flutua entre as duas, Tyler informa Karen enquanto se sente cada vez mais atraído por ela, e Soderbergh tanto segue as suas personagens como se interessa pelos bastidores do navio. E quem é aquele homem que Tyler vê sair sempre de manhã do camarote da tia, quando vai tomar o pequeno-almoço com ela? 

E será que Eisenberg e Soderbergh estão a querer dizer coisas profundas sobre a literatura, a importância das palavras e a relação do escritor com aqueles com quem priva? Ou não será tudo apenas maquilhagem de profundidade, superficialidade mascarada de relevância? Podemos sempre escolher entre seguir na travessia até ao fim, acompanhando Meryl Streep a fazer de Meryl Streep a interpretar a reservada e presunçosa Alice, Candice Bergen na predadora e oportunista Roberta e Diane Wiest na conciliatória mas insípida Susan, ao som da banda sonora “jazzy” de Thomas Newman. Ou então, exasperados com tanta conversa inconsequente, motivações inexplicadas e expectativas iludidas, abandonarmos o navio a meio.

“Let Them All Talk” está em exibição na HBO