Uma semana de turbulência no Governo onde ficaram bem expostas fraturas na equipa de António Costa. E logo em dois elementos de peso: Pedro Nuno Santos e Eduardo Cabrita. No primeiro caso, o primeiro-ministro apareceu para desautorizar uma “má fonte” que dava como certa a votação do plano da TAP no Parlamento, sabendo que acertava em Pedro Nuno Santos. No segundo, foi diferente: Costa veio a público e protegeu Eduardo Cabrita, mas só depois de o ministro o ter desafiado a isso e já depois de ter sentido na pele a pressão presidencial. Feitas as contas à semana, Costa ficou com dois ministros nas mãos, ambos a queimar em lume brando pela oposição.

Pedro Nuno Santos não escondeu as divergências com António Costa e acabou a semana a assumir que foi vencido e que acabou a acatar “uma orientação que lhe foi dada”. “Sujeitou-se a um ato de contrição pouco usual“, diz ao Observador um membro do Governo, que garante, ainda assim, que o caso ficou arrumado.

Seja como for, os dois saíram com diferentes perceções sobre quem levou a melhor no braço de ferro de discutir ou não ao Parlamento o plano da TAP. Se do lado do primeiro-ministro fica a perceção que o ministro das Infraestruturas “acatou uma orientação” e corrigiu um ímpeto que podia ter saído caro ao Governo, do lado de Pedro Nuno Santos a convicção é outra: tornar pública a sua ideia de levar o plano a votos, procurando o compromisso dos partidos com assento parlamentar, iria blindá-lo em relação ao que pudesse a acontecer à companhia aérea; Costa não o quis, e isso servirá para memória futura.

A forma como a ideia foi tornada pública deixou António Costa desconfortável. Foi Luís Marques Mendes que o revelou, no seu comentário semanal na SIC, sem revelar a fonte. Costa atirou a “quem anunciou ou teve uma má fonte [de informação] ou se precipitou naquilo que era a perspetiva de atuação do Governo. O Governo nunca se demitiu das suas responsabilidades”, disse para chutar a questão para canto.

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Depois foi a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, a vir fazer o mesmo. A “fonte” era o Governo. E, no final de dias de controvérsia, o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, acabou por assumir a paternidade da ideia, em declarações ao Expresso. “Surpreendentemente”, ironizou um governante em conversa com o Observador.

O episódio conta-se de forma simples, mas o impacto provocado por esta sucessão de acontecimentos no núcleo do Governo foi tudo menos ligeiro de gerir. Durante o feriado de 8 de dezembro, o Conselho de Ministros reuniu-se sobre a TAP e a posição de Pedro Nuno Santos não foi bem acolhida. O ministro terá ficado isolado na intenção de levar a ideia ao Parlamento. Pior: foi o próprio primeiro-ministro a impedir que a ideia se concretizasse, aponta ao Observador outro governante.

Nos dias seguintes, Pedro Nuno Santos viu o cerco público do PS a apertar-se, com as declarações do líder do Governo e da líder parlamentar. Ficou sem apoio e não lhe restou outra posição que não fosse assumir, como assumiu, isso mesmo — que estava isolado. Aos seus mais próximos, o ministro foi confidenciando nos últimos dias que “o país ficou a saber que queria ter levado o plano ao Parlamento” e que “não quer mais nada” neste momento. A posição pública do ministro fez Costa dar — como é seu hábito em pequenas e grandes crises — o assunto como arrumado. Mas o machado está só semi-enterrado.

A relação entre os dois já vinha esfriando desde 2018, já no fim da “geringonça” da qual Pedro Nuno Santos foi pivot. Desde então que o proto-candidato ao pós-costismo no PS tem firmado cada vez mais a sua autonomia política face a Costa. O exemplo mais recente foi o apoio à candidatura de Ana Gomes à Presidência, já depois de ter criticado a posição do seu colega de Governo Augusto Santos Silva em relação à ex-eurodeputada socialista. A aproximação da cúpula do PS à recandidatura de Marcelo — que teve no episódio da Autoeuropa o seu momento mais evidente — foi sempre contestada por Pedro Nuno Santos, que preferia ver o partido marcar o seu espaço nas presidenciais de 2021.

Mas se a confiança Costa/Pedro Nuno tem vindo a enfraquecer desde então, isso não quer dizer que o ministro esteja com um pé fora do Governo. O episódio pode ter fragilizado a posição do governante no imediato, mas não lhe passa pela cabeça sair do Governo, coisa deixou bem clara na entrevista à SIC de sexta-feira à noite. Costa também não o ponderou, ainda que não tenha gostado da “precipitação” de Pedro Nuno.

Marcelo sabia há uma semana da reforma do SEF

Ao mesmo tempo, noutra frente, António Costa colecionava problemas à boleia do caso SEF. O episódio do cidadão ucraniano morto no aeroporto de Lisboa, em plena pandemia, voltou em força e resultou agora, nove meses depois da morte de Ihor Homenyuk, na demissão da diretora do SEF, que admitiu “tortura evidente” ao imigrante por parte dos três inspetores do serviço.

Na noite de quinta-feira, 3 de dezembro, num jantar que teve com o primeiro-ministro, Presidente da República ficou a  conhecer a intenção e moldes da reforma que o Governo quer promover no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O Observador sabe o que não foi levantada qualquer objeção à reforma por parte de Marcelo Rebelo de Sousa.

Uma semana depois, Eduardo Cabrita veio responder à pressão pública — vinda até do próprio PS onde (mais uma vez) a líder parlamentar (e sua camarada de distrito no PS) atacava a demissão “tardia” da diretora do SEF e o “silêncio ensurdecedor” sobre o caso. Já acossado, Eduardo Cabrita respondeu irritado a acusações como esta, garantindo estar a atento e a agir “desde a primeira hora”.

Cabrita diz que condenou morte no SEF “desde a primeira hora” e garante “empenho no apuramento das responsabilidades”

Perante o pedido da sua cabeça que estava a ser feito por vários partidos, do PSD ao Bloco de Esquerda, Eduardo Cabrita atirou a questão para as mãos de António Costa, com uma irritação indisfarçável. Mas o primeiro-ministro só havia de lhe dar resposta direta no dia seguinte — segurando-o no cargo — já depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter exercido publicamente a sua pressão.

Qualquer remodelação nesta altura atrapalharia a imagem externa do Governo no momento em que se prepara para assumir a Presidência da União Europeia. Sobretudo numa área de governação que tem ocupado o centro das políticas europeias: a imigração.

No Governo é sublinhado que quando fez a declaração de quinta à noite e impeliu o Executivo para uma mudança estrutural no SEF, Marcelo já sabia que a reforma da entidade estava em marcha.

Recorde-se que em 2017, a relação entre Belém e São Bento recebeu um primeiro abalo também por causa do Ministério da Administração Interna, embora liderado por outra figura. Era então ministra Constança Urbano de Sousa, muito fragilizada pelas duas tragédias desse ano, os grandes incêndios de junho e outubro, quando Marcelo Rebelo de Sousa fez uma declaração ao país onde quase a demitiu em direto.

No dia seguinte, a ministra apresentava mesmo a demissão a Costa. Mas na altura, fonte do Governo disse ao Público estar “chocado” com as palavras presidenciais já que “as coisas estavam combinadas com o Presidente da República, nomeadamente o momento da saída da ministra Constança Urbano de Sousa”. E antes do momento. Também a reforma do SEF, confirma-se no Executivo, estava comunicada ao Presidente antes de Marcelo a vir pressionar publicamente.

Acabou o bom tempo. Começou a trovoada entre Belém e São Bento

Foi igualmente mal recebida em São Bento a estratégia do Presidente de misturar, na declaração dura de sexta-feira passada, termos que apontavam — como o Expresso chegou a noticiar — para a defesa da saída do ministro. É que Marcelo disse que era preciso “saber se aqueles que deram vida ao sistema durante um determinado período podem ser protagonistas do período seguinte — se não devem ser outros os protagonistas do período seguinte”. O Governo esperava na sexta-feira à noite que Marcelo esclarecesse a frase na entrevista que deu à SIC, mas o Presidente não o fez. Resta saber se por falta de oportunidade se porque o recado público já estava dado.